Dosier
Nem eles, nem nós: um olhar asqueroso sobre a literatura latino-americana
Neither they nor us: a revulsionary look at Latin American literature
Nem eles, nem nós: um olhar asqueroso sobre a literatura latino-americana
Cuadernos del CILHA, vol. 20, núm. 1, pp. 87-98, 2019
Universidad Nacional de Cuyo
Recepción: 16 Julio 2018
Aprobación: 25 Agosto 2018
Resumo: O foco deste artigo é a des-feita da matriz europeia pelo olhar latino-americano. Desta maneira, surge o livro Asco de Horacio Castellanos Moya que, em trânsito da indecidibilidade, prepara seu jogo de différance politicamente estética ao redor de San Salvador. Com o nome do escritor Thomas Bernhard e sua estética da repetição, Moya caminha pela desconstrução dos binômios, desconstruindo a dependência entre o original e sua cópia. Isto é, acima de tudo, um gesto político. No trabalho arqueológico proposto no presente artigo, o salto original [Ursprung] para as memórias do narrador é revelado a partir do momento em que Moya resolve contar a história dos vencidos.
Abstract: The focus of this article is the lack of a look and of the European matrix by the Latin American. In this way, the book Asco by Horacio Castellano Moya emerges that, in transit of the undecidability, prepares its game of politically aesthetic différance around San Salvador. With the name of the writer Thomas Bernhard and his aesthetics of repetition, Moya walks for the deconstruction of the binomials, thus deconstructing the dependence between the original and its copy. This is, above all, a political gesture. In the archaeological work proposed in this article the original jump [Ursprung] to the narrator's memories is revealed redeeming from the moment that Moya resolves to tell the story of the losers.
Keywords: Asco, Latin American literatura, Politics.
Palabras clave: Asco, Literatura latinoamericana, Política
América Latina enquanto Ursprung de si
Belchior, cantor e compositor cearense, encontrou em suas produções um instrumento de denúncia capaz de dar voz aos sentimentos desmemoriados socialmente, sobretudo aqueles que surgiram como reflexo do período ditatorial[1]. Além do elemento de denúncia, o músico tomou pra si o desafio de discorrer acerca do sentimento latino como forma de questionar o lugar destinado a esse. É possível encontrarmos esse último elemento ilustrado nos versos iniciais da canção intitulada Apenas um rapaz latino americano (1976): “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco / Sem parentes importantes e vindo do interior”.
Interessa-nos que tais palavras sejam situadas por um eu-lírico latino-americano apresentando-nos o local de onde ele nos fala, pois, por vezes, o discurso acerca do que compete ou não ao sujeito latino é proferido com base na perspectiva do colonizador. A América Latina interpretada por tal perspectiva ocupa uma posição contraditória, se por um lado ela apresenta traços culturais que são passíveis de valorização, por outro esses não são suficientes para elevá-la à posição de prestígio ocupada pela metrópole e, desse modo, ela é mantida fora do centro, assim como quem não conta com parentes importantes e nem dispõe de dinheiro no banco.
Nessa continuidade, Ney Matogrosso, artista brasileiro também consagrado, ao apresentar-nos a canção América do Sul (1975), propõe que nosso olhar sobre a América Latina seja capaz de transpassar o véu dos binarismos, centro-periferia, para a pensarmos por ela mesma: “Deus salve a América do Sul [...] Deixa viver esses campos molhados de suor / Esse orgulho latino em cada olhar / Esse canto e essa aurora tropical”.
A partir disso, devemos, aqui, pensar na América Latina como um espaço de devires intensos e politicamente posicionados, como local de contestação absoluta. Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari:
Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda a sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir” (Deleuze; Guattari, 2012: 20).
Nossa tarefa aqui consistirá, então, em “des-territorizar” a América Latina para em seguida a “re-territorizar” no entremeio, na escorregadia e desconfortável zona indecidível. Os devires, diga-se ainda, não se encerram em um centro irradiador de poder, mas são, eles próprios resistência/insistência. Eles são sempre devires-minorias. Isso não significa afirmar, porém, que eles são periféricos em relação ao centro, pois se trata de uma minoridade que abala uma maioridade. Nesse sentido, pensemos na leitura de Deleuze e Guattari sobre Kafka ao apontá-lo como uma literatura menor: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. Mas a primeira característica, de toda maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35). Essa literatura menor não possui menos valor em relação a uma maior, mas ela é ao mesmo tempo força e desconstrução de uma suposta origem canônica que consegue fazer o abalo de uma possível língua superior. Deste modo, não existem centros indestrutíveis, visto que qualquer olhar que seja lançado sobre as estruturas da metrópole e tenha partido de um sujeito que não a pertença é capaz de remexer as noções binomiais entre centro e periferia e desconstruir a origem.
Além do mais, cabe-nos indagar as razões que nos levaram a aceitar o lugar de desvantagem que nos foi historicamente imposto e fazê-lo implica em lançarmos um olhar crítico não sobre a gênese [Herkunft][2] da ideia de América Latina, não como instituição concreta, mas sim enquanto imaginário e fluxo no devir histórico como origem [Ursprung]. Pois, a partir disso, seremos capazes de depreender os elementos que nos integram, ou não, enquanto sujeitos latino-americanos e a importância exercida pelo nosso discurso dentro do processo de distanciamento dos valores difundidos pelo colonizador.
Nem ele, nem nós: América Latina
A concepção que temos hoje sobre "América Latina" resulta de um longo processo pautado por metamorfoses e busca por identidade. Farret & Pinto no ensaio intitulado América Latina: da construção do nome à consolidação da ideia se ocupam de abordar o tema com a profundidade necessária para elucidá-lo. Para tanto, os autores se apoiam em três concepções: a primeira apresentada pelo historiador norte-americano John Leddy Phelan, a segunda pelo filósofo uruguaio Arturo Ardao, na obra Génesis de la idea y el nombre de América Latina e a última, pelo historiador chileno Miguel Rojas Mix.
De acordo com os autores, para John Leddy Phelan, a primeira aparição do termo "América Latina" ocorreu em 1961 no contexto do panlatinismo. Trata-se de uma doutrina que existia na França desde os anos 1830, mas que teve seu ápice somente durante o Segundo Império (1852 – 1870) e cujo objetivo central visava à aproximação cultural entre França e as nascentes repúblicas de língua espanhola através de uma união "latina" intercontinental. Phelan acredita que esse período tenha propiciado não a criação do termo, mas sim a noção de uma "América Latina", assim como a dualidade "América Latina"/"América Saxônica".
No que se refere à concepção apresentada por Arturo Ardao, Farret & Pinto (2011) salientam que o filosofo uruguaio divide o processo de formação identitária tanto da América quanto da "América Latina" em três etapas, cada um deles:
[...] Em uma primeira etapa, a característica predominante seria a ausência, não só de uma noção, mas também de um nome referente ao recorte geográfico específico. A segunda etapa seria caracterizada pela percepção da existência de uma região específica, mas que ainda não tem nome. Por último tem-se a etapa na qual essa percepção passa a ser acompanhada por um nome que a expressa de maneira definitiva (32).
Ardao acentua que foi necessário um hiato de 50 anos até que, enfim, o processo de criação da noção e do nome fosse ultimado. Para ele, a primeira etapa, que é caracterizada pela "ausência", ocorreu entre o início da independência e os anos 1830. O elemento ausente era o conceito de "América Latina". Durante esse período, termos como "América Meridional", "América do Sul", "América" e "Hispanoamérica" também eram utilizados. A segunda etapa, destinada ao processo de percepção de uma região geográfica específica ainda não nomeada, se materializou entre os anos 1830 e 1850. Nessa, houve a criação da ideia de “América Latina”, mas ainda sem um nome que a acompanhasse. Por fim, a terceira etapa, sucedida na segunda metade dos anos 1850, é marcada pela criação do nome em si. Acredita-se que o nome tenha sido atribuído após a publicação do poema Las dos Américas em 1856 por José Maria Torres Caicedo, jornalista colombiano. Isso porque a partir desse momento o termo “latina” passa a ser empregado como substantivo e não mais como adjetivo.
No entanto, a concepção apresentada por Miguel Rojas em Los cien nombres de América contrasta com as considerações feitas por Phelan e por Ardao. Ele considera que seja um equívoco atribuir os méritos da criação do termo a um francês e desconhece que tenha sido Caicedo o primeiro a utilizá-lo. Para ele, o primeiro a utilizar o termo teria sido Francisco Bilbao, quem teria sofrido plágio por parte de Caicedo. Ainda que esse debate não esteja de todo encerrado, o ponto de encontro entre as concepções de Ardao e Miguel Rojas é o fato de ambas admitirem que a noção de “América Latina” surge via sujeitos latino-americanos. Reconhecer isso nos permite pensar não somente sobre a nossa reafirmação identitária, a qual é submetida a diversas tentativas de apagamento, mas também sobre as possibilidades que dispomos como forma de resistência contra os valores que nos são atribuídos pelo colonizador, entre elas, o discurso.
A lógica do conquistador é desatenta à essência da “pluralidade” em detrimento da “unidade” como única moeda de troca. Semelhante a uma via de mão única, o processo de influência movimentado pela metrópole repassa valores aos colonizados, mas jamais se permite ser submetido ao movimento inverso. Silviano Santiago (2000) afirma que o resultado de tal movimento é a instauração da dependência, no sentido mais amplo da palavra. Isso porque a criação de artistas latino-americanos, assim como o próprio discurso latino-americano, é reduzida ao parasitismo que os faz se nutrir dos valores da metrópole sem nunca lhes acrescentar algo de próprio. O autor ainda argumenta que esse sistema de dependência é aceito de forma pacífica porque, diante da falta de uma tradição autóctone, os artistas de países em evidente inferioridade econômica em relação à metrópole são obrigados a se apropriar dos modelos colocados em circulação por ela.
Diante da necessidade de romper com esse modelo imposto e trazer à luz os atributos latino-americanos fadados ao apagamento, Silviano Santiago (2000) enfatiza que a América Latina dispõe de um elemento fundamental para ir contra o sistema de “unidade” proposto pelo colonizador: a miscigenação. Elemento esse que por si só rompe com qualquer tentativa de limitação e unicidade. Segundo o autor:
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza: esses dois perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se firma, se mostra mais e mais eficaz (16).
E prossegue afirmando que:
Guardando seu lugar na segunda fila, é, no entanto, preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra (16/17).
O discurso latino-americano deve, portanto, consentir com a desconstrução da imagem de uma América Latina exultante, agradável e ideal ao turismo cultural. Crítico em sua essência, deve trazer à luz os aspectos relegados ao apagamento. Ainda nas palavras de Santiago (2000) encontramos respostas sobre onde ele deve se situar:
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre assimilação e a expressão - ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana (26).
O autor acaba por qualificar o “entre-lugar” que deve ser outorgado ao discurso latino-americano. Trata-se de um movimento cuja base é instituída pelo rompimento com a dicotomia colônia e metrópole e, aprovisionado da descontinuidade, tal lugar renuncia a qualquer possível tentativa de fechamento, em conformidade com Ribeiro (2016):
O entre-lugar surge, então, como o grito da descontinuidade e do híbrido, ele ocupa o lugar do jogo estratégico de construção e desconstrução, escapa à lógica do fechamento ocidental que circula dentro de uma encruzilhada dicotômica. Este é, pois, um pensamento que se traça pela e na différance. O discurso do entre-lugar, ainda, desterritorializa a América Latina para depois reterritorializá-la numa terceira margem (2).
Além do mais, Ribeiro (2016) enfatiza que esse estabelece relação de oposição à “angústia da influência”, a qual nos é apresentada pelo crítico literário Harold Bloom
Silviano se apropria da estrutura, ativa seus binarismos para logo em seguida fugir do modelo de aprisionamento do objeto. Sua tática é de libertação dessa ‘origem’, ou melhor, matriz, que é o discurso da dicotomia colônia e metrópole, desarticulando, assim, a angústia da influência (idem).
Para a “angústia da influência”, o movimento histórico literário decorre do conflito entre autores efebos e seus precursores. Isto é, quando um autor iniciante opta pela tentativa de conceber a originalidade criativa através de suas produções de modo que essa não perpasse, necessariamente, pelos valores estipulados pelos autores canônicos. Nesse sentido, lançamos mão das palavras de Fraga (2011):
Essa relação conflituosa aparece já claramente no seu vocabulário: efebo, o poeta jovem e iniciante que chega tarde ao processo literário e o precursor, que é a figura que conduz e “forma” o poeta jovem e atrasado. Os precursores que são o peso insustentável que os “novos artistas” devem encarar para estabelecer suas próprias criações.
Semelhantemente, Stessuk (2016) ao valer-se dos dizeres de Bloom (1991), sublinha que uma vez confrontado com o espectro da tradição literária, cada autor iniciante que ambicione ingressar nesta tradição, a fim de fugir do esquecimento, e preservar-se entre os autores [poetas] fortes, inevitavelmente haverá de competir com seus precursores na arena do poema e vir a superá-los para abrir um espaço próprio de fabulação (2).
A Silviano Santiago o movimento de embate que tange a teoria de Bloom é desinteressante, visto que nessa ainda nos deparamos com as dicotomias as quais ele se opõe. A ele tão somente é relevante situar o discurso da América Latina ao “entre-lugar” de bricolagem que lhe cabe.
Desse modo, queremos pensar aqui na narrativa de Horacio Castellanos Moya, Asco: Thomas Bernhard em San Salvador, como produto do entremeio de bricolagem e confusão espacial que se apropria do nome próprio do escritor austríaco, diga-se também europeu, Thomas Bernhard, e o conduz a outra dimensão, situando a América Latina como o outro que balança e desconstrói a ideia de origem, centro[3].
Que asco!
Nosso objeto de análise, a narrativa Asco, resulta do reencontro entre dois personagens, os amigos Moya e Vega, os quais após alguns anos, sem qualquer contato, se reúnem em um bar para conversarem sobre a vida. Vega vive há anos na condição de exilado e, em contraposição aos princípios da parábola do filho pródigo, demonstra ser incapaz de nutrir qualquer laço de afeição com seu lugar de origem, San Salvador. Os relatos apresentados na obra são proferidos pela personagem principal [Vega] e resultam da profunda insatisfação diante da necessidade de regressar à terra natal após o falecimento de sua mãe, tal desafeto é sustentado por uma série de argumentos que nos são colocados com animosidade. A folha de rosto que antecede o início da narrativa é marcada por uma advertência ao leitor por parte do autor acerca do que se sucederá:
Edgardo Vega, o personagem central desta história, existe de fato: reside em Montreal com um nome diferente – um nome saxão que também não é Thomas Bernhard. Ele me contou suas opiniões com muito mais ênfase e crueza do que pus no livro. Optei por suavizar os pontos de vista que poderiam escandalizar certos leitores (Moya, 1957: 11).
O emprego de um modo de fala descompensada é traço substancial para marcar as opiniões da personagem central, de tão aceleradas, as palavras assemelham-se ao fluxo contínuo de pensamentos, o qual é assinalado pelo excesso de vírgulas em detrimento de pontos finais e também pelas repetições:
Desde que o vi no velório de minha mãe, disse a mim mesmo: Moya é o único com quem devo conversar, nenhum outro colega de colégio apareceu no velório, ninguém mais se lembrou de mim, nenhum dos que diziam meus amigos apareceu quando minha mãe morreu, só você, Moya (Idem, 15).
Não fosse a presença moderada dos vocativos, nós, leitores, seríamos capazes de admitir estarmos diante de um monólogo, sobretudo porque não há qualquer menção às respostas proferidas pelo interlocutor de Vega. Isso somado à forma intensa com que as concepções são apresentadas abre poucas lacunas para as marcas temporais, de maneira que somente ao término tomamos ciência de que uma única tarde em um bar foi suficiente ao desabafo do locutor. Os marcadores temporais ficam a cargo do pedido para que o CD com a ópera seja reproduzido novamente, bem como a ênfase em se ausentar do local até às sete da noite, hora essa em que o público tido por ele como inadequado começa a surgir no estabelecimento, e o pedido por mais bebida:
O Lume é o único lugar de San Salvador onde posso beber, e só por um par de horas, entre cinco e sete da tarde, só duas horas e deu, depois das sete o lugar fica insuportável, o lugar mais insuportável possível, por causa do barulho das bandas de rock, tão insuportável como as cervejarias cheias de pessoas que bebem com orgulho aquela cerveja suja, me disse Vega (idem, ibidem).
Ademais, a linguagem polida transcorre todo o relato do personagem e exerce dois papéis importantes: distinguir e reduzir para qualificar. O primeiro deles corresponde à necessidade trazida por Vega de estabelecer uma fronteira entre si mesmo e os demais cidadãos salvadorenhos, de maneira que ele ocupe posição de prestígio em relação aos demais, conforme exemplificado no trecho que se segue:
O pior susto de minha vida, Moya. Inclusive, durante o trajeto entre o bordel e a casa de meu irmão no taxi, fiquei folhando meu passaporte canadense, constando que aquela pessoa na foto era eu, Thomas Bernhard, um cidadão canadense nascido, 38 anos atrás, em cidade chamada San Salvador. Isso eu não contei, Moya: não apenas mudei de nacionalidade como também mudei de nome, me disse Vega (idem: 98).
Ao mesmo tempo em que se distancia, o personagem principal se vale dos meios linguísticos para reduzir os demais indivíduos de San Salvador e, então, qualificá-los. Fica evidente na obra que essa “redução” se assemelha, em alto grau, ao processo de “zoomorfismo”, visto que em ambos os casos temos a figura do ser humano reduzido à condição de animal. É possível observarmos esse segundo elemento nos seguintes trechos:
San Salvador é horrível, as pessoas que vivem aqui são piores, é uma raça podre, a guerra transformou tudo, e se já era espantosa antes que eu fosse embora, se já era insuportável há dezoito anos, agora está de vomitar, Moya, é uma cidade de vomitar, onde só podem viver as pessoas realmente estranhas ou idiotas (Idem: 21).
Ainda nas palavras de Vega:
A cidade em si já é uma das cidades mais imundas e hostis que você poderia conhecer, uma cidade desenhada para animais, não seres humanos uma cidade que transformou o seu centro histórico em um lixão porque ninguém se importa com a história, pois o centro histórico é absolutamente desnecessário e foi transformado em um lixão, de fato, a cidade é um lixão, uma cidade nojenta, comandada por sujeitos obtusos e ladrões cuja única preocupação é destruir qualquer arquitetura que lembre minimamente o passado para construir postos de gasolina Esso, pizzarias e lanchonetes (idem: 41).
Em vista disso, torna-se evidente o movimento estabelecido pelo personagem de mostrar os demais sujeitos salvadorenhos em condições subumanas, sob justificativas ligadas aos traços culturais e ao contexto social, para posteriormente, qualificá-los de forma pejorativa.
Repetir para extinguir o centro
Os aspectos destacados e a apropriação do nome próprio do escritor Thomas Bernhard no subtítulo possuem relação fundamental na construção de sentido, sobretudo no que se refere à chamada estética da repetição bernhardiana e às escolhas linguísticas-estilísticas. Moya se vale de traços que são recorrentes na escrita do escritor austríaco não com o intuito de copiá-los, imitá-los, mas sim para desconstruir a noção da América Latina como devedora de um eu-suposto-saber europeu. Trata-se do jogo de apropriar-se dos meios linguísticos e estilísticos do autor tão somente para avariar a noção de origem, centro. Algo semelhante que Derrida nos coloca enquanto conceito, ou melhor, arquiconceito de différance. Mas o que é a différance? A différance é, na verdade, um arquiconceito, pois nele estão contidos outros conceitos que compõem a noção de desconstrução como o deslocamento do centro. Derrida fica com a escritura. O que interessa, então, ao autor de Força de lei é esse “de fora” que vem incomodar a estrutura do jogo pré-estabelecido e limitado pela ideia de estrutura, centro ou origem matricial. Nas palavras de Derrida: “O conceito de estrutura é com efeito o conceito de um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída do jogo.” (Derrida, 1971: 230-231).
Nessa sequência, a respeito da escrita de Bernhard, Ribeiro (2017) sublinha que a obra do autor se revela como uma espécie de escritura de revolta que tenciona resistência. E continua:
A repetição que faz parte de sua arte do exagero [Übertreibungskunst] é uma propriedade regular em sua obra. Revelando-se quase monomaníaca, é uma espécie de brincadeira sádica e pueril de Bernhard com o leitor. Normalmente pode ser associada à sua obra de ficção, e muitas vezes, dissociada de sua escrita de si, visto que a repetição ocorre mais profusamente nos textos ficcionais (Ribeiro, 2017: 7).
Por fim, Ribeiro (2017) nos diz que o uso de tal recurso caracteriza um recurso estilístico que se revela politicamente ético e eticamente político. E se por um lado a repetição presente na escrita de Thomas Bernhard nos faz traçar o caminho que parte do sério em direção ao lúdico, em nosso objeto de análise observamos o oposto. Adriana Lunardi (2013), ao comentar o posfácio de Asco, afirma que a referência é quanto ao estilo tomado de empréstimos ao autor [Bernhard] que em seus romances, há duras críticas à Áustria, seu país de adoção, e aos austríacos naquilo de que são mais ciosos em termos identitários. Como se bem vê pelo trecho:
Arrasto a Áustria constantemente na Lama, dizem essas pessoas, difamo a pátria de maneira mais despudorada, não perco ocasião de atribuir aos austríacos uma mentalidade abjeta, sórdida e nacional-socialista, quando na verdade não haveria traços dessa mentalidade abjeta, sórdida e nacional-socialista na Áustria, como escrevem essas pessoas. A Áustria não era nem abjeta nem sórdida, sempre foi somente bela, escrevem essas pessoas, e o povo austríaco era respeitável. (Bernhard, 2000: 16, grifos meus).
A comentadora completa afirmando que ao modo de Extinção, de Bernhard, Moya não escreveu Asco com o intuito de fazer sonhar. Melhor recebida será a sua novela se o leitor rir, primeiro, para depois, e só depois, pensar.
Há dezoito anos que não voltava a este país, dezoito anos durante os quais tudo isso não fez a menor falta, porque fui embora justamente para fugir desse país, eu achava que era a coisa mais cruel e desumana do mundo saber que havia centenas de países no planeta e eu acebei nascendo logo no pior de todos, no mais estúpido, o mais criminoso, nunca vou aceitar, Moya (Moya, 1957: 18).
Quando nos debruçamos sobre as páginas iniciais da novela de Moya nos percebemos capazes de encarar com certa graça as críticas de Vega, mesmo porque, nesse primeiro momento, há a noção de que essas não se prolongarão por muitas páginas adiante. A primeira impressão, de fato, nos provoca o riso, pois soa como espécie de brincadeira entre dois amigos de infância que criticam características pontuais de seu local de origem. Todavia, com o avançar da leitura, percebemos que o teor crítico permanece marcando a narrativa com o grau de acidez que se intensifica ainda mais e, aquilo que causava o riso inicialmente, passa a gerar sensação de profundo incômodo.
Há, também, a impressão de que todo o diálogo monossilábico na mesa do bar Lume é incapaz de evoluir para outras temáticas que não sejam da ordem do descontentamento. E, nesse sentido, é interessante pensarmos em outro ponto de contraste entre a obra de Thomas Bernhard e a novela de Moya. Enquanto o escritor austríaco expressa a relação de amor e ódio que nutre por seu lugar de origem, Vega não nos apresenta qualquer traço que seja passível de afeição, mas exprime somente o ódio e todas as suas escolhas de vocábulo que contribuem com a intensificação desse sentimento.
No mais, é eminente não perdermos de vista que a novela de Moya, em toda sua essência, materializa a possibilidade [enquanto potência que livremente pode transformar] de devolver a América Latina a seu entre-lugar. O autor lança mão do estilo de escrita de Thomas Bernhard para orientar o discurso do personagem latino americano, quem nos apresenta a América Latina contrária ao senso comum, e rompe com a noção de que essa seja um paraíso da ordem do exótico. Apropriar-se do escritor europeu concede ao autor latino o movimento de criticá-lo, de modo a abalar os fechados jogos de centro-periferia, e o dever de contaminar a forma literária que é tida como grande literatura, basta que o olhar desse a transcenda [grande literatura] de forma crítica. Uma vez que o nome próprio Thomas Bernhard é apropriado, ele mesmo é abalado enquanto matriz europeia, e isso nos permite apontar que a literatura alemã é tão devedora de uma suposta colônia quanto a latina, ela mesma, já nasce para nós contaminada e impura.
Bibliografia
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Notas