Respigas que acionam dobras para pensar o
cinema
nos processos formativos docentes
Espigas que desencadenan pliegues
para pensar el cine en los procesos de formación docente
Gleanings
Processes That Activate Folds to Think the Cinema in Teachers’ Education
Francieli Regina Garlet
Universidade Federal de Santa Maria,
Brasil.
francieligarlet@yahoo.com.br
Vivien Kelling Cardonetti
Universidade Federal de Santa Maria,
Brasil.
vicardonetti@gmail.com
Marilda Oliveira de Oliveira
Universidade Federal de Santa Maria,
Brasil.
marildaoliveira27@gmail.com
Recibido: 30/09/2020
Aceptado: 15/12/2020
Resumo. Este
artigo propõe diferentes
fluxos de pensamentos a partir de dobras que vão entrecruzando
conceitos
filosóficos, experimentações de escrita com frames
recolhidos do documentário
‘Os catadores e eu’, de Agnès Varda. As inquietudes
acionadas junto à imagem
fílmica intencionaram problematizar formas de pensar o processo
formativo na
docência. Alguns questionamentos estiveram presentes neste
percurso: De que
maneira a respiga de afetos-inquietudes em meio a encontros com as
imagens
fílmicas contribuem na desconstrução de
clichês que colecionamos com relação à
docência? Como as experimentações com o cinema
podem potencializar um processo
contínuo de criação de docências? Que
conversações são possíveis quando se
aposta no encontro com elementos heterogêneos e, aparentemente,
improváveis em
relação à docência? Dessa forma, a
estratégia metodológica passou a acontecer
junto de um exercício de espreita acompanhado da respiga de
afetos e das dobras
criadas com aquilo que foi fervilhando em meio a essa escrita. Cada
dobra
trazida foi atravessada por perguntas-inquietações que
emergiram do que se
recolheu em meio às experiências educativas, às
filosofias da diferença e aos
frames recolhidos do documentário, potencializando outras
construções de
sentidos em relação à experiência de
formação.
Palavras-chave. Imagem fílmica, respiga,
afeto, dobra, formação docente.
Resumen. Este artículo propone
diferentes corrientes de pensamientos desde algunos pliegues que se entrecruzan
por conceptos filosóficos, experimentaciones de escritura con frames
recogidos del documental Les Glaneurs et la glaneuse, de Agnès Varda.
Las inquietudes desencadenadas junto a la imagen fílmica intentan problematizar
formas de pensar el proceso formativo en la enseñanza. Algunas preguntas han
estado presentes en este camino: ¿De qué manera la espiga de
afectos-inquietudes en medio a los encuentros con las imágenes fílmicas
contribuen en la deconstrución de clichés que coleccionamos con respecto a la
enseñanza?, ¿Cómo las experimentaciones con el cinema pueden potencializar un
proceso continuo de creación de enseñanzas?, ¿Qué conversaciones son posibles
cuando se apuesta en el encuentro con elementos heterogéneos y, aparentemente,
improbables en relación a la enseñanza? De esta manera la estrategia metodológica
comenzó a suceder junto con un ejercicio de acecho acompañado de un destello de
afectos y los pliegues creados con lo que hervía en medio de este escrito. Cada
pliegue traído fue atravesado por preguntas-inquietudes que surgieron de lo
recogido en medio de las experiencias educativas, las filosofias de la
diferencia y los marcos recogidos del documental, potenciando otras
construcciones de sentidos en relación a la experiencia formativa.
Palabras clave. Imagen fílmica, espiga,
afecto, pliegue, formación docente.
Abstract. This paper proposes different flows of thought
through folds that interweave philosophical concepts, experimentations of
writing with frames retrieved from ‘Os Catadores e eu’ by Agnès Varda. The
uneasiness generated by the filmic image intended to problematize ways of
conceiving the education process in teaching. Some questionings were present in
this path: How can the gleaning of affection-concerns along the encounter with
the filmic images contribute for the deconstruction of cliches that we gather
in relation to teaching? How can the experimentation with the cinema promote a
continuous process in the creation of teaching? What conversations are possible
when encounters with heterogeneous and apparently unlikely elements are explored
in relation to teaching? Thus, the methodological strategy happened during an
observation exercise accompanied by the gleaning of affection and grooves
created by what was boiled within the writing process. Each fold presented was
crossed by concern-questions that emerged of what was collected in the
education experiences, philosophies of difference and the frames retrieved from
the documentary, potentializing other meaning constructions in relation to the
educational experience.
Keywords. Filmic image, gleaning, affection, fold, teacher’s education.
Figura 01: Frames com falas de Agnès
Varda, no documentário Os catadores e eu.
Fonte: Documentário disponível em https://pt-br.facebook.com/oscatadoreseeu/videos/1333916976681688/
Que viagens você tem inventado nesses tempos
de reclusão social e de pandemia? O que você recolhe e guarda das suas viagens?
Quais recolhas suas têm lhe visitado e que outros encontros elas têm produzido
com o presente que não para de escoar, embora o mundo pareça parado? Qual a
potência da presença desses elementos recolhidos junto às forças que se agitam
no agora? Que esquecimentos pairam junto a esses elementos recolhidos? Há
elementos que você não lembra em que situação recolheu? Qual a potência desse
esquecimento?
Deleuze e Guattari (2011) falam em uma
memória curta que é composta por processos de esquecimentos. Essa memória, “é
de tipo rizoma, diagrama, enquanto que a longa é arborescente e centralizada
(2011, p. 35). Assim, na esquiva de pensar o esquecimento como uma falta,
podemos pensá-lo como abertura, como respiros necessários para que uma outra
experiência, no agora, possa acontecer com o que recolhemos outrora, onde
outros elementos possam entrar em composição, oportunizando que o passado possa
se atualizar, abraçando uma diferença de si para consigo a partir do presente.
Esse movimento abre vias para “fazer do esquecimento uma força, uma linha de fuga, que é o contrário da
fuga niilista, ou da denegação. É, pois, através desse esquecimento ativo,
inventivo, que se pode engendrar uma memória do devir” (2009, p. 16).
Com
o convite lançado pelo dossiê Filosofía,
cine y educación e da pergunta-flecha acionada em nós pela chamada: Que
inquietudes podem gerar o cinema enquanto experiência de formação?, buscamos
abordar, neste artigo, como o cinema tem atravessado nossas experiências
educativas com turmas de graduação em Licenciatura em Artes Visuais. Fazemos
isso em composição com as inquietudes acionadas pelo encontro com o
documentário Les glaneurs et la glaneuse
(2000), da cineasta belga radicada na França Agnès Varda, traduzido
literalmente como Os catadores e a
catadora, que na versão brasileira recebe o nome de Os catadores e eu.
Operamos
esse texto a partir de dobras, que vão entrecruzando conceitos filosóficos,
experimentações de pensamento e escrita com imagens e fragmentos recolhidos do
documentário. A dobra é operada como produções de dentros com o fora que nos
chega. O fora diz de tudo o que bagunça nossas concepções, convocando-nos a
pensar. É o que traz a inquietude que nos instiga produzir um dentro para
abrigá-la e para forjamos, nessa ação, meios de “dar língua para afetos que
pedem passagem” (Rolnik, 2006, p. 23). “Enquanto um fora é dobrado, um
dentro lhe é coextensivo como memória, como vida, como duração” (Pelbart, 2007,
p. 55).
Tomando
o esquecimento como potência e a respiga[1] como
estratégia para produzir encontros, cada dobra trazida é atravessada por
perguntas-inquietações que emergem do que recolhemos em meio à vida, em nossas
experiências educativas na licenciatura em Artes Visuais, em nossos estudos das
filosofias da diferença e junto aos fragmentos recolhidos do documentário Os catadores e eu. Assim se compõe nossa
estratégia metodológica, com espreitas, respiga de afetos e dobras produzidas
com aquilo que fervilha nos encontros com essa escrita. Tomamos a dobra,
conceito filosófico operado por Deleuze (2007), a partir de seus encontros com
o pensamento de Leibniz, como movimento de operação na escrita deste artigo. Em
Conversações, Deleuze menciona que
As linhas retas se assemelham, mas as dobras
variam, e cada dobra vai diferindo. Não há duas coisas pregueadas do mesmo
modo, nem dois rochedos, e não existe uma dobra regular para uma mesma coisa.
Nesse sentido, há dobras por todo o lado, mas a dobra não é universal. É um diferenciador, um diferencial. Existem dois tipos de conceitos, os universais e as
singularidades. O conceito de dobra é sempre um singular, e ele só pode ganhar
terreno variando, bifurcando, se metamorfoseando. (Deleuze, 2010, pp. 199-200,
grifos do autor)
Assim, o que cintila nessa escrita a partir
de cada dobra, busca uma granulação (Barthes, 2004) do que foi possível
experimentar e operar na imanência desse percurso.
Figura 02: Frame do documentário
‘Os catadores e eu’ de Agnès Varda.
Fonte: documentário disponível em https://pt-br.facebook.com/oscatadoreseeu/videos/1333916976681688/
O documentário Os catadores e eu de Agnès Varda, aborda por uma multiplicidade de
vias a ação de catar, recolher, respigar aquilo que é descartado ou deixado
para trás por outras pessoas. Seja após uma colheita, à exemplo da ação das
camponesas do séc. XIX que aparecem na famosa pintura As Respigadoras de Jean-François Millet (1857); ou pelo chefe de
cozinha, que faz questão de respigar os ingredientes que utiliza para seus
pratos; daqueles e daquelas que respigam as batatas que não couberam no tamanho
aceito pelo mercado; de quem respiga os descartes de alimentos e materiais nas
ruas para se alimentar e também para buscar alimentos para suas criações; ou
pela própria ação da cineasta Agnès, que respiga imagens, sons e encontros com
sua câmera, tendo como atrator e espreita, no documentário, a própria ação de
respigar.
A respiga pode acontecer por uma necessidade
fisiológica básica - alimentar-se, alimentar a família - mas também por outras
necessidades que podem acionar processos de criação com aquilo que se respiga.
Pode-se respigar pelo prazer e pela aventura de coletar, pelos encontros que
uma respiga em meio à vida pode acionar. Isso nos convida a pensar junto a
chamada do dossiê: Que recolhas, respigas, realizamos ao assistir uma imagem
fílmica? Que inquietudes essas recolhas produzem em nós? Como nos
convidam-violentam a pensar? Que composições nos incitam a produzir? Que
sentidos são criados quando nos apropriamos dessas recolhas fílmicas e as
colocamos em relação com outros elementos-alimentos[2]? O que nos
escapa a cada vez ao assistimos a um mesmo filme? A que novas respigas nos
convidam a cada vez, tendo em vista que ao assistir a um mesmo filme diversas
vezes, nossas experiências serão diferentes em cada uma delas?
Como afirmam Deleuze e Parnet (1998, p. 73),
“tudo é apenas encontro no universo, bom ou mau encontro”, encontros produzidos
por afetos. “O que pode um corpo?” Perguntamos com Deleuze e Parnet a partir de
Spinoza, “de que afetos é ele capaz? Os afetos são devires: ora eles nos
enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações
(tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência...
(alegria)” (Deleuze; Parnet, 1998, pp. 73-74). O corpo não está dado de
antemão, ele se define assim nos encontros, pelo que pode junto daquilo que lhe
faz um chamado e aciona um afeto. Deleuze e Parnet chamam de “sinal o que
desencadeia um afeto, o que vem efetuar um poder de ser afetado: a teia se
agita, o crânio se dobra, um pouco de pele se desnuda. Nada a não ser sinais
como estrelas em uma noite” (1998, p. 74).
Com o documentário somos convidadas a pensar
esses sinais, que como menciona Susana Oliveira Dias (2019, informação verbal[3]),
fazem-nos curvar, dobrarmo-nos diante da terra, do chão, para recolher,
respigar algo. Esse gesto de dobrar-se para respigar, catar algo, mesmo em
situações em não temos que literalmente curvar o corpo (como, ao assistir a uma
imagem fílmica, por exemplo), provoca-nos a atentar para as dobras que essa
ação e esses encontros oportunizados por ela, podem produzir em nossa vida e em
nossa subjetividade.
Pensamos, assim, essa ação de curvar-se, de
dobrar-se, como um gesto de acolhida e de disponibilidade aos movimentos de
criação, diferenciação e inquietude que perpassam o corpo-pensamento nos
encontros (com imagens fílmicas, com escritas, com imagens, com gestos, em meio
a uma aula, em meio à vida). Como uma escuta, uma atenção, na qual nos
colocamos disponíveis a ouvir e tatear também aquilo que não sabemos, que não
queremos, que julgamos não precisar (Larrosa, 2011); uma atenção àquilo que
toca nossas vitalidades, mas também nossas fragilidades, e que pode acionar com
elas uma vitalidade de criação. Esse gesto de dobrar-se pode operar assim uma
singularidade em esquiva aos movimentos de generalização que buscam manter
representações universais.
Curvar-se, dobrar-se é acolher os signos que
nos chegam e a inquietude que acionam em nós, é abraçar o caos, o fora que nos
chega nesse encontro, uma dobra que produz desse fora violento que nos tira o
chão, um dentro, um lugar onde é possível viver e viver de um outro modo. Que
afetos têm nos instigado a produzir essas dobras? Que inquietudes nossas
recolhas têm acionado em nós? Catar, qual a potência desse verbo-ação na
docência e na experiência educativa?
Catar pode dizer de um movimento de docência
não apartada da pesquisa, uma docência que cata para alimentar seu
corpo-pensamento e para manter seu movimento na produção de outras dobras de si
e de outras dobras no mundo. Catar pode dizer respeito também a uma busca, a
uma procura insistente, uma busca que pode remeter a encontrar algo que se
espera - as pessoas do documentário sabiam, por exemplo, que encontrariam
batatas que haviam sido recém depositadas em uma localidade específica da
França, batatas descartadas, por não caberem no tamanho exigido pelo mercado,
por serem muito grandes ou muito pequenas para serem comercializadas -, mas
catar, pode dizer também de encontros inesperados que dispararam outros
[im]possíveis em meio às nossas recolhas.
No decorrer do documentário, Agnès Varda, ao
conversar com uma das pessoas que estava a recolher as batatas do chão,
depara-se com batatas em formato de coração e, passa, “num gesto arriscado”[4], a
recolhê-las com uma mão enquanto filma com a outra. Varda as leva para sua casa
e passa a acompanhar e se interessar pela vida das batatas. Da inquietude desse
encontro, passa a fazer existir a instalação Patatutopia, produzida para a bienal de Veneza de 2003.
A inquietude, enquanto produção de uma
dobra, abriga assim uma duração naquilo que é recolhido, duração entendida não
apenas por sua durabilidade física, mas por seu potencial de diferenciar-se
nesse processo. A partir de seus estudos em Bergson, Deleuze menciona que a
duração acolhe processos de diferenciação enquanto potencial de variação de
algo “qualitativamente em relação a si” (Deleuze, 1999, p. 22). Enquanto o
espaço, a extensão, apresentaria somente as mudanças de grau, ou seja, seria
apenas o lugar, a matéria, onde essas mudanças se efetuariam e se tornariam perceptíveis,
a duração aconteceria como uma maneira de ser no tempo, envolvendo uma mudança
de natureza. Ao se deparar com as mudanças físicas das batatas em sua duração
temporal, uma mudança de natureza se passava também no corpo-pensamento de
Varda movimentando o processo de criação de Patatutopia.
Tendo em vista que nossas recolhas não se
mantém intactas em sua duração e que elas mudam de natureza ao se agenciar com
elementos heterogêneos, a ação de catar e as inquietudes e dobras acionadas por
essas recolhas podem ser vias potentes para pensar-operar a formação docente
num processo contínuo de diferenciação de si para consigo. Ao recolher e então
produzir, articular, criar, fazer existir algo com o que recolhemos (um
pensamento, um gesto, uma postura, uma escrita, uma composição visual, etc.),
também estamos nos produzindo-criando nesse processo.
Figura 03: Agnès Varda, Patatutopia, 2003.
Videoinstalação de três telas (6:26 min., em loop), com 1.500 libras de batatas
no chão, 18 pés x 6 pés. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/agnesvardaofficiel/
Agnès Varda, ao contar sobre o início do
processo de criação da instalação Patatutopia (2003), menciona:
Eu filmei [em The Gleaners and the Gleaner] muitas batatas e tive a chance de
conhecer batatas em forma de coração. Eu as mantive no porão e no ar, as
mantive e olhei para elas. A transformação delas me fascinou, primeiro com um
envelhecimento espetacular, depois com novos germes e regeneração. Eu as filmei
com prazer. Elas são lindas e respiram[6]
Agnès, atenta nesse processo para a
vitalidade que se agita naquelas batatas não aceitas pelo mercado, cria com
elas possibilidades de relação que as colocam em outras possibilidades de
existência. A partir dessas considerações, mais um questionamento pode ser
lançado: Que inquietudes emergem ao nos depararmos com a putrefação, com os
odores e com os brotamentos que irrompem da superfície viva dessas batatas
recolhidas por Varda? Como sugerem Callai e Ribetto na apresentação do livro Uma escrita acadêmica outra, “inventar é
compor com restos” (2016, p. 13). Essa colocação faz pensar naquilo que excede
a cada experiência que nos atravessa e naquilo que passa a ser produzido com
aquilo que nos transborda e arrasta.
Segundo Corazza (2013, p. 98),
toda
invenção, toda criação, passa a ser
também “um processo de auto-criação, de
criação de si; ou seja, um diferenciar,
diferenciando-se”. Isso encontra
ressonância naquilo que Susana Oliveira Dias (2019), em uma
palestra a partir
do documentário de Agnès, chama de autocompostagem: um
processo de criação de
si que se dá de forma não apartada da dimensão
coletiva, de um tornar-se
disponível para outras vidas.
A criação se dá junto de encontros e de uma
disponibilidade a esses encontros. Acontece ao experimentarmos e acolhermos
isso que nos extrapola a cada experiência. Ao pensarmos a imagem fílmica na
experiência formativa na docência, interessa-nos abraçar a potência da imagem
fílmica nesse processo de autocompostagem e criação de si na docência.
Interessa experimentar nesse processo o que podem nossos recortes inacabados de
mundo que recolhemos em nossas andanças, ao se encontrarem com os recortes e
respigas que produzimos nas imagens fílmicas que assistimos, e ainda, como
esses encontros podem nos impulsionar a pensar-criar nossos processos docentes.
O processo de criação de Agnès Varda no documentário é atravessado por uma escuta
aos chamados das coisas e da vida, num gesto de não se colocar no lugar do
outro, mas de escutar e acolher o que ele tem a dizer e a movimentar.
Figura 04: Frames do documentário
‘Os catadores e eu’ de Agnès Varda.
Fonte: documentário disponível em https://pt-br.facebook.com/oscatadoreseeu/videos/1333916976681688/
Um relógio sem ponteiros que já não dá conta
do funcionamento que a lógica espera dele. Um teto que vaza, pinga, ao mesmo
tempo em que desenha paisagens em sua superfície. A noção de autocompostagem
trazida por Dias (2019) junto a esses fragmentos do documentário nos convidam a
pensar naquilo que é desconsiderado em meio aos nossos processos formativos e no
que podemos pensar-produzir-criar ao recolher essas ‘insignificâncias’ e
‘restos’ em nossas experiências educativas. Convida-nos a atentar para a
potência do mínimo na educação e na formação docente, a espreitar a vitalidade
do que muitas vezes é rejeitado e descartado, levando em consideração as
histórias inscritas nesses resíduos e resquícios. Histórias que nos contam dos
fluxos de forças que atravessam esses elementos que foram rechaçados, pois não
se moldaram ao padrão imposto, mostrando ao mundo a sua forma singular de
viver.
Como menciona Ribetto:
Apostar no mínimo é uma escolha pelo
abandono das narrações e descrições dos grandes fatos heroicos que
habitualmente nos contam os grandes projetos políticos-pedagógicos, as
inovadoras reformas educacionais, as heroicas práticas de superprofessores
engajados etc.; pois essa é uma narração que opera na produção de uma língua
que não acolhe o gaguejar das línguas dos sujeitos que praticam a educação
cotidianamente e praticam inscrevendo nos seus corpos a experiência de
replicação, mas também de fuga dos modelos dados a priori.
Apostar no mínimo pode dizer assim,
de produzir-criar a nós mesmos com nossos restos, com aquilo que não pode
passar na esteira, ou na malha do mercado e dos sistemas de produção e representação.
Investir no mínimo pode ser um meio de resistir a essas malhas que não
contemplam nossas singularidades, nossos formatos pequenos ou grandes demais e
nossas rugosidades produzidas pelas dobras que vão se compondo com a nossa
existência. A resistência ao formato padrão nos convida, assim, a experimentar
uma força disparadora de variação, uma potência intensiva e uma fenda para a
invenção. Esse movimento audacioso impulsiona ao deslocamento, à alteração e à
mudança, traz para o palco elementos ignorados ou desconhecidos, arranjos
inusitados, maneiras distintas de viver e de se relacionar com o mundo. (2016,
p. 65)
Ao apostar no mínimo e na vitalidade de cada
pessoa, coisa, fragmento, resto, situação, e na escuta de formas singulares de
relação com o mundo, passa-se a buscar “uma noção de corpos em relação, em que
não exista nenhum vestígio sobre o que falta ou sobre o que faz falta”, noção
que nos convida a fazer fugir julgamentos, propondo-nos um “encontro
incondicional com o outro” (Skliar, 2014, p. 163). Isso supõe um deslocamento,
onde o que é descartado em uma dada situação pode compor possibilidades vivas
de existência quando colocado em outras formas de relação e composição.
No livro Cinema 1- A imagem-movimento,
Deleuze nos provoca: “para onde vão os objetos que não têm mais utilidade?
[...] o que deixou de ser útil, simplesmente começa a ser” (1983, p. 208, grifo do autor). Assim, o autor nos instiga a
pensar que outras histórias podem ser produzidas-criadas com o aquilo é
considerado, pela lógica da representação e do mercado (elas que alimentam
nossos clichês), como inútil.
Quando relacionamos estas questões com o
processo formativo docente, algumas questões passam a ser problematizadas. Por
muito tempo tivemos a ideia que formar significava desenvolver um conjunto de
disposições preexistentes ou, por outro lado, levar as pessoas a um modelo
ideal que foi fixado previamente. Falta, falha e insuficiência foram sempre
vistas, por essa perspectiva, como algo desprezível e impraticável. Para suprir
essa lacuna, buscava-se promover ações arbitrárias, limitadoras e excludentes.
Anelice Ribetto (2011) nos convida a pensar
a formação de professores a partir do exercício da experimentação e das
relações transversais, buscando visualizar esse território como um espaço
menor, de resistência, de invenção e de desconstrução de um suposto campo
maior. A autora busca - nas considerações que Deleuze e Guattari fazem no livro
Kafka por uma literatura menor e no
deslocamento que Silvio Gallo empreende desse estudo com a noção de educação
menor - ensaiar algumas ideias sobre formação menor, subvertendo a noção de
formação dominante e seus saberes hegemônicos.
Dessa forma, ela aposta em uma formação sem
um modelo autoritário, normativo e prescritivo a adotar, pois ao experienciar
seus percursos, a docência passa a afirmar a multiplicidade, uma multiplicidade
que está sempre em movimento e que se esquiva ante qualquer tentativa de
reduzi-la. A autora nos convida a pensar nos encontros e composições que
podemos experimentar ao estarmos docentes em uma formação que não se sabe antes
que esses encontros aconteçam. Uma formação que se dá junto daquilo que vamos
produzindo-pensando-criando com os afetos que respigamos em nossas experiências
com a docência. Respigas que podem acontecer tanto em meio à uma aula, como
também a partir de encontros que se dão em meio à vida, em meio àquilo passa
por nós e que produz inquietudes... Leituras, filmes, imagens, escritas e toda
ordem de restos que encontramos pelo caminho, os quais, de algum modo,
violentam-nos a pensar nos processos de formação-criação de nossas docências,
nunca acabadas.
Essa noção de formação menor, proposta pela
autora, desconstrói a ideia de uma única maneira de se produzir conhecimento,
pois ela resiste e questiona a formação instituída como padrão. Ela se
movimenta transversalmente, não acontece de forma isolada, passando a ter um
valor coletivo. Essa perspectiva abranda a docência da cobrança de gestos
heroicos e redentores, pois passa a investir naquilo que é possível produzir e
aprender junto de quem faz conosco a travessia, impelindo a pensar a formação
docente em termos de gestos mínimos construídos no coletivo (Ribetto, 2011).
Figura 05: Frames do documentário ‘Os
catadores e eu’ de Agnès Varda. Fonte: documentário disponível em https://pt-br.facebook.com/oscatadoreseeu/videos/1333916976681688/
Há muitas coisas que já estão aí, compondo e
produzindo mundos dentro do mundo: pulverizações de vidas em movimento,
fragmentos esquecidos, informações, fatos, verdades sendo produzidas e
desfeitas, leis, transgressões, gestos, névoas, virtualidades, restos. Há
aquilo que carregamos por afetação e que nos brinda possibilidades outras no
nosso caminhar; há aquilo que gruda em nosso corpo, por vezes sem que nos demos
conta; há coisas que carregamos que, em alguns casos, faz com que nosso
corpo-pensamento fique no mesmo lugar; há o que abandonamos em meio ao
percurso, para podermos seguir e há também aquilo que perdemos sem querer, com
o nosso movimento.
Muitas coisas passam por nós todos os dias,
mas, como isso tudo nos toca (Larrosa, 2011)? O que disso tudo passa a compor
conosco outros modos de viver? Como nosso corpo tem se encontrado com esse
mundo em movimento? Há aberturas para sentir o mundo, como “um mundo todo vivo”
(Dias, 2019, online), um mundo cheio de mundos, com distintas versões e modos
de relação com ele em coexistência?
Sentir um mundo todo vivo, como Dias nos
provoca, diz de sentir a virtualidade que cada coisa, gesto, fala, imagem,
texto, fragmento, resto, abriga em torno de si. A parte aberta ao encontro e a
produção de sentidos, a parte das coisas que ainda não está dada, e que nos
convoca a pensar-criar. Diz de uma relação com aquilo com que nos encontramos,
que não se restringe à recognição, alastrando-se pelo que esse encontro vai nos
convidando a conectar e produzir junto dessa virtualidade e como isso vai ao
mesmo tempo nos produzindo nesse processo, convocando a virtualidade que nos
acompanha a distintas atualizações.
Abordamos nesse texto, o pensamento e a
criação de forma não apartada. Partilhamos do que defende Levy (2011), que
ambos acontecem junto de encontros que nos convocam a enfrentar o fora. O fora,
segundo Levy, “constitui o domínio das forças, das singularidades selvagens, da
virtualidade, onde as coisas não são ainda, onde tudo está por acontecer”
(2011, p. 102). Ao tratar do que chama de experiência do fora, a autora coloca
que
fazer do pensamento e da arte uma experiência
do fora pressupõe o contato com uma violência que nos tira do campo da
recognição e nos lança diante do acaso, onde nada é previsível, onde nossas
relações com o senso comum são rompidas, abalando certezas e verdades. (Levy,
2011, p. 100)
Isso gera desconforto, inquieta, mas nos
abre a possibilidade de pensar-criar outros modos de vida com o fora que é
acionado pelos encontros. Esse movimento com o imprevisível propele entrar em
contato com diferenças e não somente com similaridades, possibilitando inventar
inusitadas perspectivas de vida para o mundo em que vivemos, pois “o melhor dos
mundos é não aquele que reproduz o eterno, mas aquele em que se produz o novo,
aquele que tem uma capacidade de novidade” (Deleuze, 2007, p. 136).
Nossa formação se deu no campo da
Licenciatura em Artes Visuais, que é a paisagem na qual também atuamos, mas, há
algum tempo os estudos das filosofias da diferença tem atravessado nossas
investigações e experiências educativas, afetando o modo com que temos pensado
a arte e a docência em artes visuais. A presença das imagens fílmicas também
tem permeado nossas experiências educativas. Ambas, tem atuado como paisagens
das quais recolhemos elementos-alimentos para pensar esse processo formativo na
docência, um processo sempre em obra, nunca acabado em definitivo.
É a partir das recolhas produzidas por afetos-inquietudes
e pelo potencial desses elementos recolhidos em movimentar algo em nós, que as
conversações com o cinema, com a filosofia e com a docência em artes visuais
vão sendo produzidas. Na sequência dessa escrita, trazemos autores que nos convidam
a pensar essas recolhas e coleções que vamos produzindo com elas, seja na arte,
seja na docência.
Thierry de Duve (2009) menciona
que a
palavra ‘arte’ não é, pois, um conceito,
é uma ‘coleção de exemplos’, diferente
para cada pessoa. A partir dessa colocação, é
possível pensar que a cada
experimentação com a arte, oportunidades outras de
composições dessas coleções
passam a ser engendradas. Esta coleção está sempre
em constante abertura e
movimento, pois elementos novos estão sujeitos a atuar, alguns
são remanejados
e outros tantos são deixados pelo caminho. Nestas forças
em cena, permutam-se
partículas e outras composições são
produzidas, assegurando o movimento dos
fluxos e as energias flutuantes.
O pensador francês André Malraux (1947)
concebeu a ideia de um ‘museu imaginário’, que seria a reunião de obras cujas
afinidades não procedem de uma história linear e hierarquizada, mas sim do
interesse de quem com elas se encontra. O que mais fascina esse autor é a
possibilidade de ver esse museu como um ambiente vivo e ilimitado que habita o
ser humano, pois é um espaço virtual que suspende as fronteiras que por vezes
são impostas entre as imagens.
Já Luiz Guilherme Vergara (1996) cunhou o
termo ‘curadoria educativa’ como meio de explorar a potência da arte enquanto
veículo de ação cultural. Esse conceito instiga a pensar na prática curatorial
como uma ação de docentes ou de estudantes que fazem um recorte de imagens a
partir de uma perspectiva que se deseja explorar, ativando culturalmente
produções visuais. Nessa curadoria educativa, podemos nos aventurar em
recolhas/escolhas, que não necessariamente sejam aquelas que nos são
recorrentes ou as que nos sentimos confortáveis para abordar, isso nos impele a
pensar qual a potência de trabalharmos também com produções visuais que nos
inquietam e com as quais nem sempre sabemos lidar (Martins et. al., 2012).
Produzir uma curadoria educativa é fazer
recolhas, respigas, e a respiga diz muito de recolher aquilo que por algum
motivo foi deixado para trás (alimentos não apanhados pela máquina de colher,
as batatas que não cabem no tamanho exigido pelo mercado, aquilo que sobrou,
que excedeu, que foi descartado...). Isso nos instiga a pensar que outros
movimentos essas recolhas podem produzir em meio à vida e em meio a repetição
da lógica que nos parece mais confortável. Em como uma curadoria educativa pode
se dar mais por afetos que nos inquietam e acionam outros [im]possíveis, do que
por aquilo que já sabemos aonde vai chegar, ou que nos é confortável pensar.
Esses
três autores nos incitam a explorar o que temos pensado-produzido enquanto arte
na educação das artes visuais, nas recolhas de imagens que temos realizado para
nossas experiências educativas e na constelação de afetos que vamos produzindo
no decorrer da vida, e que vão nos compondo de distintos modos a cada vez.
Ao investigar as inquietudes que o cinema
pode gerar junto à experiência de formação, passamos a exercitar uma curadoria
educativa, convidando, também, discentes da licenciatura a operá-la junto às imagens
fílmicas que trabalhamos coletivamente. Uma curadoria que nos permita recolher
junto às imagens fílmicas assistidas aquilo que afeta e impulsiona a pensar na
formação docente através de outras perspectivas e desdobramentos. Afetos que
nos abrem outros [im]possíveis, distintos daqueles pré-selecionados pela lógica
da máquina representativa, que deixa para trás as potências da diferença, que
são aquelas capazes de acionar outros modos de existência.
À
vista disso, o propósito é que os signos implicados nesta ‘curadoria’, nessa
‘coleção de exemplos’ ou neste ‘museu imaginário’ de cada pessoa envolvida,
possam ter o papel de tensores, a fim de produzir fricções, diálogos,
problematizações, produções e proliferações de diferentes sentidos junto aos
processos formativos docentes.
O cinema, por ser uma matéria pensante, uma
matéria inteligível, pode propelir o pensamento enquanto criação, propiciando
atuar no mundo apresentado e no cotidiano que nos é alheio. Ao “experimentar
outras vidas em uma apropriação provisória, abrimos a possibilidade de sair de
nós e morar nos espaços suspensos pela ausência” (Romaguera; Sanches; Amorim,
2010, p. 183), passando a experienciar mundos que são distintos daqueles que
vivenciamos e que nos pareciam distantes. Essa experiência propicia inquietudes
que vão produzindo outras dobras para nossos processos subjetivos, forjando
perspectivas outras em nosso cenário existencial, encorajando-nos a criar
outras possibilidades de sentir o mundo e os tantos mundos que movimentam e compõem
esse mundo. David Lapoujade a partir de seus estudos em Étienne Souriau,
menciona que
não existe primeiramente um mundo comum do
qual cada um se apropria para fazer dele o seu
mundo, mas o inverso. Há inicialmente mundos [...] singulares, que formam, em
seguida, um mundo comum através de suas comunicações múltiplas. [...] em vez de
um mundo comum, há uma multiplicidade de maneiras ou de gestos: maneiras de
percebê-lo, de se apropriar dele, de explorar suas potencialidades. (Lapoujade,
2017, p. 57, grifo do autor)
Talvez o cinema nos brinde essa
possibilidade de nos conectar com outros mundos dentro do mundo, seja pelo que
sua narrativa aborda, seja pelo modo com que essa narrativa é abordada, que
pode nos convidar a experimentar outras perspectivas e outras relações com os
mundos com os quais nos encontramos.
Deleuze coloca que “o cinema é produtor de
realidade” (2010, p. 80). A experiência ao assistir a um filme, um
documentário, um curta-metragem é real, pois as cenas e as sensações são
mostradas de forma que venhamos a sentir e vivenciar intensamente cada momento.
Nesse viés, as imagens fílmicas ou os signos fílmicos podem ser experienciados
como inquietudes que impulsionam a contestação dos hábitos do pensamento ainda
arraigados e solidificados em nós.
Deste modo, as imagens fílmicas podem nos
oferecer singulares experimentações, pois elas ressoam em múltiplas direções e
sentidos, convidando-nos a engendrar diferentes conexões, o que pode nos
convidar a uma esquiva do movimento de interpretação, que ainda supõe um ‘eu’
que interpreta, para nos colocarmos num movimento de saída de nós, no qual só
podemos retornar diferentes do que éramos. Quando acolhemos a faculdade plural
das imagens fílmicas, elas são impelidas a outras imagens, diversamente do sentido
representativo, em que as imagens voltam para si mesmas. Esta faculdade
múltipla contribui para sua profusão e dispersão. Isto nos faz pensar que “uma
imagem nunca está só. O que conta é a relação entre as imagens” (Deleuze, 2010,
pp. 71-72), e é na relação que as imagens e seus mundos podem produzir outros
mundos inusitados.
Nessa direção, algumas questões passam a ser
potentes nas paisagens que temos tateado no contexto de formação inicial na
docência em artes visuais, onde temos experienciado a imagem fílmica como
potência para acionar encontros que impulsionem a pensar-criar esse processo de
formação: Que conversações e inquietudes são possíveis de serem produzidas
quando apostamos no encontro com elementos heterogêneos e, aparentemente,
improváveis em relação à docência? De que maneira tais inquietudes, acionadas
junto de encontros com imagens fílmicas, podem contribuir na desconstrução de
verdades estabelecidas, de clichês que colecionamos com relação à docência? Que
criações e desconstruções de sentidos são possíveis no coletivo, ao colocarmos
nossa perspectiva para conversar com a perspectiva de outras pessoas? De que
modo essas conjugações podem ativar processos de criação de si na docência?
Como as experimentações com o cinema podem potencializar a docência como um
processo contínuo de criação?
Com essas questões, pensamos a presença do
cinema na experiência educativa e formativa na docência em artes visuais como
signos que abrem um fora, um fora que nos permite encontros com outros mundos
(factuais ou ficcionais), dos quais recolhemos fragmentos e inquietudes para
pensar, compor e criar nossas docências em processo infinito de criação de si.
Trazer como disparadores para pensar a docência, elementos que aparentemente
não se conectam a ela ou que não dizem de docência, têm produzido em nós um
outro movimento.
Somos impelidos a estar à espreita de
signos, em meio às imagens fílmicas, que podem atuar como um fora que
desconforta nossas certezas e clichês, convocando a fazer um outro movimento,
que não é o da representação, nem de ilustrar nossas experiências docentes com
a imagem fílmica, mas sim de fazer, com o que recolhemos dos filmes, outras
experiências de pensamento, de escrita, de composição, de si e de nossas
docências. E quando isso é produzido no coletivo, são diferentes recolhas e
modos de relação com a imagem fílmica que são colocadas em conversação, o que
também atua como meio de seguir estendendo esse rizoma para ‘n’ direções.[7]
No território de confluências do
documentário ‘Os catadores e eu’, buscamos, neste texto, apostar na
problematização dos processos formativos docentes, propiciando conversações e
um alastramento de possibilidades em circuitos cada vez mais amplos. Ao trabalhar
e explorar o documentário junto a alguns conceitos filosóficos e ao modo com
que temos operado com o cinema em nossas experiências educativas, intentamos
dar língua a possíveis dobramentos que fizessem da linha reta do mesmo, outras
possibilidades de existir a partir dos afetos-inquietudes que nos atravessaram
nessa escrita.
O desafio foi pensar e experimentar
possibilidades provisórias e substituíveis, abertas ao devir, e investir na
relação com a imagem fílmica, sem a preocupação em corresponder, equivaler,
interpretar e reproduzir. Esse movimento trata-se de um esforço contínuo, um
exercício a ser recomeçado a cada vez, pois como menciona Deleuze (1990, p.
31): “nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos,
percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que
temos interesse em perceber”, e esse interesse muitas vezes é capturado por
forças que assediam a recair na representação, no universal, na generalização,
na idealização, alimentando clichês que saturam nossos poros, impedindo-nos de
sentir o mundo como algo todo vivo (Dias, 2019). A comodidade dos
lugares-comuns faz com que venhamos a repetir o que é previsível, o que é
corriqueiro e trivial.
Na docência é possível reunir uma coleção de
clichês que vão atravessando os processos formativos, produzindo modos de estar
docente que se esforçam em caber na linha reta, deixando de lado, escondendo,
abandonando a coleção de dobras que vão se produzindo em meio ao caminhar que é
singular para cada docência. Apostamos aqui, justamente nessas dobras, na
respiga do que excede e transborda, e o cinema tem funcionado como estratégia
potente para fomentar o pensamento e processos de formação menores (Ribetto,
2011) que dizem de uma criação contínua de si.
As ressonâncias que foram dissipadas podem
ser vistas “como aventuras singulares do pensamento às quais a existência
múltipla do cinema deu vida” (Rancière, 2012, p. 17), as quais têm a
propriedade de se renovar a cada novo encontro, pois as relações e as problematizações
suscitadas em relação à imagem fílmica são inexauríveis. Assim, deixamos essa
escrita como um convite aberto para que outras respigas, afetos e inquietudes
possam remexer e produzir outras dobras junto do que aqui experimentamos e
oferecemos.
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[1] Diz de uma ação de
recolher, catar, apanhar do chão. No campo, diz da ação de recolher o que fica
para trás após as colheitas. Assim, tomamos nessa escrita a respiga como uma
ação menor, de recolher afetos-inquietudes em meio àquilo que já foi dito,
feito, produzido. Interessa-nos, também, a respiga daquilo que foi deixado para
trás, insignificâncias, restos, sobras.
[2] O termo elementos-alimentos diz respeito a tudo o que possa dar
“língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de
expressão e criar sentido” (Rolnik, 2006, p. 65).
[3] Susana Oliveira Dias na palestra Cinema, Mesopolítica e Antropoceno -
experimentos em ecologias de práticas e afetos vitais com Agnès Varda
comenta sobre esse gesto de “dobrar-se diante da terra”, com o qual podemos
pensar também na potência desses encontros que nos fazem recolher algo e do
potencial desse encontro de produzir uma nova inquietude, uma nova dobra em
nós, em nossa subjetividade.
A palestra,
mencionada, ocorreu no dia 18 de junho de 2019, da sessão do cineclube
Pedagogias da Imagem, no auditório Manoel Maurício, CFCH/UFRJ, após a exibição
do filme 'Os catadores e eu', de Agnès Varda, e está
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z9sRt5ki0-E
[4] Fala de Agnès no documentário enquanto recolhe as batatas do chão
colocando-as em sua sacola.
[5] Esse título parte de uma das pessoas entrevistadas por Agnès Varda
no documentário dirigido por ela ‘Os catadores e eu’.
[7] Algumas dessas
experimentações podem ser acessadas nas seguintes publicações das autoras:
(Tese XXX), (artigo XXX), (artigo XXX), (artigo XXX), (artigo XXX), (artigo
XXX) e (artigo XXX). Acrescentaremos posteriormente essas informações para que
não ocorra quebra de anonimato na avaliação do artigo.