A aula, o cinema: exercício e
invenção
La clase, el
cine: ejercicio e invención
The class, the cinema: exercise and
invention
Rosana Fernandes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
rosanafernandes.edu@gmail.com
Sandra Almansa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
sandraealmansa@gmail.com
Recibido:
05/10/2020
Aceptado:
03/12/2020
Resumo.
Neste ensaio, discutimos possibilidades de encontros e integrações entre o cinema
e a educação. Dispomo-nos a pensar, por meio de nossas experiências fílmicas e
docentes, a respeito dos modos pelos quais o cinema pode se imbricar com a
vida, com nossos corpos no mundo, com o mundo no qual vivemos, ao qual criamos
e do qual participamos. E, com isso, imaginamos modos pelos quais propor uma
aula, e organizar os gestos de uma aula, com cinema. Sem pretender esgotar o
assunto, as discussões encaminham-se filosoficamente para a defesa de um
trabalho de invenções com cinema e educação, em que a experiência educativa e a
experiência do cinema já não apresentem divisas tão claras, mas se fazem e se
afirmam como um composto (e desde um componente) de imersão (nos filmes, na
aula), e de uma disposição a abrir os olhos e os ouvidos, desde a potência da
infância aos exercícios, às lições, às aprendizagens, aos conhecimentos aí em
jogo, sem deixar de acolher o não saber, o silêncio, as lacunas com que se
constituem.
Palavras-chave.
Cinema, Educação, Filosofia, Invenção.
Resumen.
En este ensayo discutimos posibilidades de encuentro e integraciones entre
el cine y la educación. Nos disponemos a pensar, por medio de nuestras
experiencias cinematográficas y docentes, acerca de los modos por los que el
cine puede imbricarse con la vida, con nuestros cuerpos en el mundo, con el
mundo en el que vivimos, al que creamos y del que participamos. Y con eso
imaginamos modos por los cuales proponer una clase, y organizar los gestos de
una clase, con cine. Sin pretender agotar el assunto, las discusiones avanzan filosóficamente
hacia la defensa de un trabajo de invenciones con cine y educación, en el que
la experiencia educativa y la experiencia del cine ya no presenten divisas tan
claras, pero se hacen y se afirman como un compuesto (y desde un componente) de
inmersión (en las películas, en la clase), y de una disposición a abrir los
ojos y los oídos, desde la potencia de la infancia a los ejercicios, a las
lecciones, a los aprendizajes, a los conocimientos en juego, sin dejar de
acoger el no saber, el silencio, ni los vacíos con que se constituyen.
Palabras
clave. Cine, Educación, Filosofía, Invención.
Abstract. In this essay, we discuss
possibilities of encounters and integrations between cinema and education. We
are willing to think, through our film and teaching experiences, about the ways
in which cinema can be interlaced with life, with our bodies in the world, with
the world we live in, which we create and we participate in. And with this we
imagine ways in which to propose a class, and organize the gestures of a class,
with cinema. Without trying to exhaust the subject, the discussions are
philosophically directed towards the defense of a work of inventions with
cinema and education, in which the educational experience and the experience of
the cinema no longer present such clear boundaries, but are made and affirmed
themselves as a compound (and a component) of immersion (in films, in class),
and a willingness to open our eyes and ears, from the power of childhood, to
exercises, to lessons, to learning, to the knowledge at stake, without ceasing
to welcome the not knowing, the silence, the gaps with which they are
constituted.
Keywords.
Cinema, Education, Philosophy, Invention.
A força que irrompe do olho.
Robert Bresson
Em “Shirin” (2008), Abbas Kiarostami exibe a narração de
passagens da história de Khosrow e Shirin. Nós, espectadores, temos: o áudio;
os rostos de cento e catorze mulheres, filmadas em primeiro plano (as mulheres
são atrizes iranianas, exceto Juliette Binoche); jogos de luz e cor; e alguns
poucos homens (que aparecem apenas de relance). E, assim, Kiarostami nos leva,
ao seu estilo, para experimentar uma relação com um poema persa de 1175, por
meio desses rostos, capazes de nos fazer ver através de suas reações,
sentimentos, e do inesgotável que se apresenta em suas expressões, em seus
gestos. A linha entre a tela e os espectadores é tênue, há como uma passagem
aberta, uma integração misteriosa. O filme convoca a imaginação, os sentidos.
Por vezes nos pegamos virando o rosto, tentando dar uma espiada, caindo para
dentro da tela. A emoção conduz o corpo do espectador.
Em 2019, no “11º Festival Escolar de Cinema”, em Porto
Alegre, em uma sala de cinema lotada por crianças assistindo a “Sing — Quem
canta seus males espanta” (2016), direção de Garth Jennings, e a “Viva — A vida
é uma festa” (2017), direção de Lee Unkrich e Adrian Molina, de outro modo
experimentamos, novamente, um cinema vazado. Os
corpos das crianças se inclinavam de tal maneira que quase entrariam na tela,
era uma onda de corpos que vibrava e não se continha, as vozes do cinema
exclamavam “Meena, Meena, Meena”. Um êxtase contagiava os corpos presentes, era
pura emoção, vida e expansão de si.
Nessas duas oportunidades, assistindo a “Shirin” e apreciando
o “11º Festival Escolar de Cinema”, a relação com o cinema se passou de maneira
a nos recordar uma de suas
magias. Que dizem também ter acontecido quando os irmãos Lumière exibiram, em
uma sala no Boulevard des Capucines em
Paris, em 28 de dezembro de 1895, “A chegada de um trem à estação de La Ciotat”, e os espectadores
viveram a emoção assombrosa de que o trem transpassaria a tela, e invadiria a
sala. Essa magia com que
o cinema é inaugurado, e que nasce, junto com ele, parece já nos indicar que o
cinema é feito de passagens, aberturas, brechas. O cinema é cheio de
hiatos, de possíveis, os filmes tocam nossos corpos, provocam repulsas,
emoções, desejos, encantamentos, nos carregam para outros mundos. E o novo pode
nascer aí, uma postura não prevista, um outro olhar, uma nova percepção acerca
de contextos, modos de vida e relações.
O cinema é
feito de magia, de fabulação, de afecções, e não só de técnica. Ao
entrarmos em uma sala de cinema e vermos tantos corpos de crianças comungando
com a magia do cinema, nós,
adultas, nos lembramos de algo como o mencionado por Giorgio Agamben, sobre
Walter Benjamin: “Benjamin disse, certa vez, que a primeira experiência que a
criança tem do mundo não é a de que ‘os adultos são mais fortes, mas sua
incapacidade de magia’” (Agamben, 2007, p. 23). Ora, se um corpo adulto
não comunga com a magia do cinema, e não se torna capaz de um pouco de magia,
de atravessamentos, de devires e de dança, poderá propor desenrolamentos em uma
aula, desde o filme assistido, sem matar a experiência cinematográfica?
O que importa fazer com um filme, e após assistir a um
filme com as crianças? Ou então, com adolescentes, com jovens, com adultos,
enfim, com indivíduos quaisquer, em um contexto educacional? O que o cinema
pode ensinar a uma aula? Talvez, preferível que perguntar “o que fazer
depois de ver um filme com os alunos?”, ou “como fazer isso e aquilo?”,
será perguntar “onde está a vontade de fazer e de provocar situações em
aula a partir da experiência cinematográfica?” Ou ainda, “de que modos essa
vontade, e nossa disposição, atuam?” “Quais forças estão em jogo?” “Essa vontade é capaz de efetuar quais
começos, intensidades, criações?”
Questões como essas são, certamente, parte de uma conversa
infinita sobre as potências e as possibilidades de encontros e integrações
entre o cinema e a educação. Nós escolhemos partir dessas duas experiências
cinematográficas — “Shirin” e “11º Festival Escolar de Cinema” — para
problematizarmos algumas relações entre cinema e educação e para nos aproximarmos
dessa conversa, que tem muitas abordagens possíveis. E, assim como se faz no
cinema, realizamos escolhas, recortes, seleções, para focar e nos deter no que
tem nos tomado nos filmes que vemos e nos afectam, e no que tem se formulado em
nossas salas de aula, nas nossas aulas, nas escolas por onde andamos, nos
nossos seminários, estudos, leituras. Interessa-nos a constituição de respostas
não prescritivas, abertas, problematizadoras de posições e usos, o exercício do
olhar, a fabulação, as experimentações com a câmera, liberadas de compromissos
com os modelos de verdade. “Pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada
nem reproduzida, ela deve ser criada” (Deleuze, 2007, p. 178).
Encontrar um parentesco entre imagem, som e silêncio. Dar-lhes
aparência de se agradarem mutuamente, de terem escolhido o seu lugar. Milton: Silence
was pleased (O silêncio foi agraciado).
Robert Bresson
Didi-Huberman (2016), em uma conferência pronunciada em 2013,
propõe, sobre as imagens que ele está ali expondo, que cada imagem é muito mais
rica que tudo o que ele pode dizer com palavras. Possivelmente, muitas de nós
já tenhamos compartilhado alguma coisa de silêncio, de desalinho, de
insuficiência ou afasia da linguagem diante de imagens que nos afectam, imagens
cuja força da experiência parece desacomodar as palavras. Apesar disso, dessa
medida de silêncio a que algumas imagens nos interpõem, talvez uma das tarefas
da educação consista, justamente, em abrir os olhos e dar ouvido, em deixar
escutar, ao olhar pela primeira vez uma imagem, ou ao olhar novamente, para
somente então elaborar palavras e oferecê-las, ainda que inexatas, e sempre
provisórias.
Elaborar palavras e oferecê-las, não para que façam falar as
imagens — o que, de resto, consiste num trabalho de Sísifo. Tampouco para
superar algo como um “problema de tradução”, que envolveria “traduzir em
palavras o que não está feito de palavras”, como o cinema (Larrosa, 2006, p.
114, trad. nossa). Mas, antes, para fazer dançar a palavra presa, contraída,
desencontrada. Para habitá-la desde o sem som da voz, e melhor ajustar as
distâncias entre o que vemos e o que nos olha, entre nós e o outro, entre corpo
e pensamento, entre memória e esquecimento, entre profundidades e superfícies.
Quignard, no texto “O nome na ponta da língua”, fala de uma
falha na linguagem, da qual músicos, crianças, e escritores são habitantes. Não
só eles, em alguma instância todos nós habitamos essa falha, principalmente
quando estamos diante de contextos, elementos, signos que nos afectam. “Mas que
homem não tem por destino a falha da linguagem e o silêncio como seu derradeiro
rosto?” (Quignard, 2018, p. 14).
Há, semelhantemente, um silêncio, uma presença silenciosa que
não raro se impõe quando vemos um filme que nos afecta, que altera nossas
percepções, que modifica algo em nós. E a exigência de dizer ou de escrever
qualquer coisa imediatamente depois de uma experiência dessa natureza, se não
se investe do exercício do silêncio na invenção da palavra, nem da parcela de
experiência revestida do não dito, pode impedir que os corpos vivam esse
silêncio, essa afasia, essa sensação de não saber o que dizer. Além de que,
seguidamente, o filme persiste nos corpos depois que ele termina. Alguns de nós
sonhamos com o filme por dias.
É, pois, imperativo que os exercícios que se seguem à sessão
de cinema numa sala de aula, num lugar de estudo, não sejam exercícios
mecânicos, da ordem da reprodução do mesmo e da recognição, pergunta-resposta,
ação-reação, exercícios que acabam por sufocar ou matar a experiência do cinema.
É preciso ter em mente que mesmo essa visão que “chega antes das palavras, e que quase nunca pode ser
por elas descrita, não é uma questão de reagir mecanicamente a estímulos”
(Berger, 1999, p. 10), e que só podemos pensá-la dessa maneira se “isolarmos a
pequena parte do processo que concerne à retina ocular” (Berger, 1999, p. 10).
Ao invés disso, nós “só vemos aquilo que olhamos, [e] olhar é um ato de
escolha. Como resultado dessa escolha, aquilo que vemos é trazido para o âmbito
do nosso alcance — ainda
que não necessariamente ao alcance da mão” (Berger, 1999, p. 10).
O cinema
opera com olhares, com modos de ver, realiza recortes, desfechos,
enquadramentos, montagens, encena, cria imagens. Os estudantes e os
professores, por distintas que sejam as circunstâncias escolares, de estudo, de
ensino e de aprendizagem, podem aprender muito sobre si mesmos, sobre as
próprias potências, limites e criações, sobre o mundo, a vida, os lugares, os
modos de vida e as maneiras de pensar, se os exercícios propostos com o cinema
tiverem essa abertura, e exercerem esse tipo de intervenção.
Não ter a alma de um cumpridor de tarefas. Encontrar, a
cada plano, um novo sal no que eu tinha imaginado. Invenção (reinvenção)
imediata.
Robert Bresson
Alicia Vega, por meio do “Taller de Cine para Niños”, nos faz
pensar sobre o lugar da experiência cinematográfica na formação de um
indivíduo, sobre as forças criadoras, os impasses, vibrações, aprendizados.
Alicia Vega é uma pesquisadora e historiadora de cinema, professora
universitária, que, desde os anos 80, realiza o “Taller de Cine para Niños”, em
diversas comunidades de Santiago do Chile. Ela nos ensina que as aprendizagens
relacionadas ao trabalho que desenvolve nunca estiveram diretamente
relacionadas ao fazer e saber cinema, e não objetivam formar cineastas. Antes
de tudo, o “Taller de Cine para Niños” sempre funcionou como uma
ferramenta para as crianças aprenderem suas próprias forças, para conhecerem
mais sobre si mesmas, o arredor e o mundo. O foco do trabalho é a formação em
termos de estética audiovisual, o
exercício da atenção, da criatividade, a apreciação.
Alicia jamais simplificou o cinema para levá-lo às crianças.
No documentário “Cien niños esperando un tren”, de Ignacio Agüero (1988),
acompanhamos o encontro do cinema com as crianças (e seus familiares), sem
simplificação, sem paternalismo. O documentário relata uma das primeiras
experiências do “Taller de Cine para Niños”, em plena ditadura militar, em
1987, no bairro Lo Hermida, de Peñalolén, em Santiago do Chile. Aí assistimos
algo da riqueza da experiência com o cinema daquelas crianças, ao mesmo tempo
em que as vemos recortarem, colarem, construírem zootropos, fotogramas,
taumatrópios. Acompanhamos como elas aprendem e ensinam os seus familiares a
verem e a conhecerem outros registros, vemos como uns e outros experimentam
diferentes modos de ver, e os vemos se maravilharem. As crianças criam imagens
e histórias, assistem a filmes, registram as aulas, conhecem a história e a
linguagem do cinema, se encantam, se alegram, ultrapassam seus próprios
limites. As crianças conhecem o cinema e sua história aprendendo-os,
imbricados, com a própria vida, com os próprios corpos.
Em 2012, em entrevista a Álvaro Matus, Alicia esclarece que a
maioria das crianças com quem ela trabalha, de início, ignora a experiência de
ir ao cinema. E segue:
E não é só isso. A maioria nunca viu um filme inteiro, nem
mesmo [os] que exibimos, que não tem mais de 20 minutos. Entre os 12 e 17
minutos se mantêm concentrados. Depois se dispersam. Alguns chegam a dizer:
“Tia, sinto falta dos comerciais, porque são engraçados, divertidos”. Não estão
acostumados a respeitar o tempo de um filme e aprender isso é um dos objetivos
da oficina. Eles têm a cultura do comercial, onde a cada momento a imagem é
interrompida e para eles isso é normal, não há outra forma de ver a imagem. (Matus,
2012, p. 09).
Com o tempo e o trabalho persistente, uma espécie de
intimidade se instala entre as crianças, a linguagem, a história e a magia do
cinema. As crianças não só assistem a um filme inteiro, sem comercial, em sala
escura de cinema, como começam a perguntar o nome do filme, o país de origem, o
ano e o diretor (cf. Vega, 2012). Walter Benjamin, no texto “Experiência e
pobreza” (1994), nos coloca questões sobre os empobrecimentos de nossas
rotinas, repertórios, cultura, experiências, e nos incita a pensar sobre as
misérias políticas, éticas e estéticas que se instituem em nossas vidas.
Benjamin nos coloca diante da extinção da experiência que se passa de pessoa a
pessoa:
Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que
saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje
palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em
geração? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
(Benjamin, 1994, p. 114).
De certa forma, Alicia Vega se ocupa de levar, de oferecer a
possibilidade da experiência do cinema e da arte para outros. Ela narra,
apresenta, ama o cinema e abraça a tarefa de transmitir (como se transmite um
anel) suas histórias com o cinema. Ela educa, ensina e assume uma
responsabilidade por este mundo — poderíamos dizer, com Hannah Arendt (cf.
2014). Importa-nos trazer o trabalho da Alicia Vega, aqui, também para puxar
uma conversa voltada a estabelecer diferenças entre envolver-se com exercícios
que aumentam a potência de pensar, viver, ver, sentir, criar, e o ato de
cumprir tarefas sem sentido, mecânicas, da ordem da reprodução, copia-cola.
Além disso, queremos propor uma desaceleração das
expectativas docentes quanto aos resultados imediatos e mensuráveis de um
trabalho, de um curso, de um seminário, enfim. Na educação vivemos uma
valorização excessiva das notas, dos números, da quantidade de atividades, do
consumo de ideias, da estabilidade dos resultados e da rapidez, em detrimento
de dar-se às experiências, de compreender e acolher a experiência desde sua
relação com a vida e o mundo, de demorar-se, abrir-se, expor-se, criar. A vida
e o pensamento se fazem mais plenos à medida que é possível criar. E isso,
claro, não se dá sem esforço, trabalho, exercícios. Ao contrário, é preciso
trabalhar muito para distender ou construir uma ideia. Ao mesmo tempo árduo e
precioso, assim o esforço se apresenta “mais precioso do que a obra que resulta
dele, porque, graças a ele, tiramos de nós mais do que tínhamos, elevamo-nos
acima de nós mesmos” (Bergson, 1979, p. 80).
Vimos em “Cien niños esperando un tren” as crianças atraídas
por diversos exercícios, atentas, vendo imagens, construindo, exercendo-se ao
fazerem os exercícios indicados. Algumas cenas de “Cien niños esperando un
tren” foram se misturando, em nós, com cenas de “Jacquot de Nantes” (Varda,
1991), “O filho de Rambow” (Jennings, 2007), “Vida e Nada Mais (E a Vida Continua…)” (Kiarostami, 1992) e, então,
entrevimos: Jacques Demy e o fascínio
pelas imagens, o trabalho exaustivo e atento, o desejo de magia; o filho de
Rambow e a imaginação, as fugas que fazem fugir o que mata a vida, a repetição
do exercício para se chegar na cena que se deseja; Puya e o enquadramento com
as mãos, selecionando o notável e o atraente, suas quedas, deslizes,
desejos e exploração cartográfica.
O cinema é pedagógico, mas não por causa do conteúdo. Ele é
pedagógico porque, desde a produção à exibição, nos ensina sobre nós mesmos,
sobre outrem e o mundo. Ensina-nos o trabalho em equipe, a repetição capaz de
criar o novo, a desconfiança das imagens. Ele nos apresenta outros modos de
ver, nos interpela com suas imagens, nos povoa e nos emaranha pelas sensações
que nos tomam, quando nosso corpo e o cinema se encontram.
Provocar o inesperado. Esperá-lo.
Robert Bresson
Em “ABC África”, filme de Abbas Kiarostami (2001), por
exemplo, as imagens nos intimam feito “pontos cardeais” capazes de reorientar
nossa percepção, cindindo os habituais estereótipos e imagens
pré-estabelecidas, muitas vezes flutuantes na superfície daquilo que sabemos,
ou que julgamos saber sobre o outro, sobre um povo, um país, sobre suas
culturas — imagens que,
muitas vezes, estruturam nossos juízos sobre eles.
Disposto simplesmente a circular alguns dias por Uganda “e
dar uma olhada ao redor” (Kiarostami, 2004), Kiarostami (cuja experiência de
África se limitava a matérias infelizes lidas em jornais, ou mostradas por
canais televisivos como a CNN) não nos contou apenas mais uma história africana, deixando-a correr por conta própria
diante da câmera. Ao invés disso, ele filmou “ABC África” encontrando ali, e
dali extraindo, uma potência diversa.[1]
Isso não significa negar que o drama, em suas diversas faces, acompanha a vida
local: da desigualdade social à guerra civil, da inumanidade à miséria humana,
do abandono ao fim. Os muitos mortos que encontrou pela região, por certo
tocavam a Kiarostami feito “imagens do fim do mundo” (Kiarostami, 2004).
À época da realização do filme, já se contavam mais de um
milhão e quinhentas mil crianças órfãs, e dois milhões de mortes por
consequência da AIDS no país, então com pouco mais de vinte e dois milhões de
habitantes. Com uma câmera de vídeo, a filmar os “apontamentos” iniciais
daquilo que por si só, depois, se tornaria o filme, Kiarostami e seu operador
de câmera registravam, sem “tempo nem necessidade de criar embelezamentos”, “a
realidade que viam” (Kiarostami, 2004, p. 253). Apesar do tema em questão, no
entanto, muitos planos de “ABC África” testemunham um gesto afirmativo da
existência: ante a realidade implacável da morte, o que se vê no filme “são os
vivos que se movimentam perante a câmera” e que são, sobretudo, crianças
(Kiarostami, 2004, p. 254).
Assim, ao invés de afirmar que um em cada dez habitantes já
morreu, Kiarostami (2004, p. 253) prefere “sublinhar que vivem nove pessoas em
dez” — afirmação que se
reveste da força inconformada da vida, que habita a criança. Diante (e dentro)
da cartografia imagética de “ABC
África”, o irremediável da catástrofe se demove, e em seu lugar impõe-se uma presença viva que convoca o
espectador a, junto a ela, reinventar seu olhar, a construir um novo olhar com
essa presença que ele agora incorpora.
Ao ver-se implicado entre a gravidade das informações que
recebe logo nos planos iniciais do filme, e a “percorrer” de dentro de um
pequeno veículo (cujo rádio toca uma canção vibrante) as faixas rudimentares de
asfalto que recortam florestas, o espectador é surpreendido por uma leveza
intolerável ao se encontrar com corpos que, dentro do filme, encontram-se e se
comunicam entre si (e também conosco) por meio da gestualidade da dança. Tudo se passa como se as imagens de
Kiarostami nos fizessem descobrir algo do dançarino que trabalha em nosso
próprio corpo. Especialmente, quando o filme nos surpreende com uma turba de
crianças cujo signo dançante, signo de vida, não por acaso compõe a totalidade
no quadro. Uma turba enigmática de rostos e
corpos de meninos e meninas cuja dança acompanha um canto em uníssono, a
capela, envolvem nossos sentidos e afrontam nossa percepção distorcida,
espantada em face da vida por um fio, com a vivacidade dos corpos que dançam.
Ao invés de mostrar simplesmente o
visível de Uganda, de
apresentar ou de reproduzir a “realidade” em forma de
cinema, a arte de
Kiarostami consiste antes em captar as forças ali
invisíveis, como por exemplo,
em tornar visível a infância. Consiste em captar as
forças de sua exposição, de
sua temporalidade, de seu comportamento, e nos oferecê-la como um
múltiplo e
enorme rosto “que nos enfrenta, que nos olha, e nos escapa”
(Larrosa, 2006, p.
117, trad. nossa). Talvez, a pedagogia das imagens de Kiarostami
dê
visibilidade a uma infância espontaneamente dançante
não simplesmente para nos
fazer calar em meio à inquietação de “como
é possível dançar, naquele cenário
em que se adentra?”. Mas, para nos mostrar (imaginamos, à
esteira de Deleuze)
como o cinema funciona com “sementes dançantes” e
“poeira luminosa”, produzindo
assim “a gênese de um ‘corpo desconhecido’ que
temos atrás da cabeça, como o
impensado no pensamento, nascimento do visível que ainda se
furta à vista”
(Deleuze, 2007, p. 241).
Se, como conclui o cineasta iraniano a respeito da
experiência de “ABC África”, o filtro
de certos hábitos nos mantém na distância onde só se consegue pensar em
qualquer coisa de catastrófico no contexto africano, sem ver verdadeiramente a
vida que fica (Kiarostami, 2004), a proximidade, no entanto, produz diferença,
e ela ali é gestualidade da infância, na força das imagens desse filme, e do
que delas devêm em nós.
Mais do que
qualquer outra coisa, a gestualidade das crianças interroga, e seu movimento de
certo modo desloca as imagens dos corpos, e de tudo o mais que vemos. Ela
suspende nosso olhar daquilo que observamos: da aridez das estradas
transitadas, da luz quente e quase insuportável dos dias, do enérgico amarelo
das roupas à nudez insustentável dos corpos. Na medida em que nos envolve, a
dança descontinua o desarrimo do horizonte ao qual se olha, ou se julgava ver,
e nos introduz em outra dimensão onde nada mais é fixo, onde tudo é ritmo,
pulsação. Nem a guerra nem a penúria podem despossuir o corpo de sua dança, de
sua magia. Ela excede nossos olhos, vibra como uma onda que atravessa todos os
corpos na imagem e também o corpo espectador, e torna apertados nossos sapatos,
diante de outros pés descalços.
A cena
paradigmática da dança das crianças, insurgente por entre tantas outras
cenas que nos fazem “endolorescer” (cf. Didi-Huberman, 2015) diante de “ABC
África”, nada tem a ver com apaziguar ou embelezar o sofrimento, o que ela
deixa é antes o rastro de um gesto, um sinal de presença que é ao mesmo tempo
vontade de movimento, zona de intensidade e matéria da liberdade. É ela quem
nos arremessa àquela parcela de imprevisto e de mistério do cinema, quando este
se mostra, como cedo observou Antonin Artaud (2008, p. 172), “revelador de uma
vida oculta”, uma vida com a qual nos coloca “diretamente em contato”, mas a qual é preciso “saber
adivinhar”.
Oposto à fragilidade do corpo esvaído, morrediço, o corpo
dançarino de “ABC África”, que é, sobretudo, o corpo da infância, tem em si uma
potência embrionária. Trata-se de uma potência de criação, de invenção, que
resiste às formas da exclusão, da indiferença, do sofrimento e do genocídio
cotidianos. Diante da imagem-gesto desse corpo que nos enfrenta, e do rosto que
nos encara, nosso corpo é cinematograficamente afetado pela exterioridade, pela
alteridade (em sua dança e sua dor), e convocado a outro modo de ver. Somos
convocadas a “uma mirada infantil sobre o mundo” (Larrosa, 2006, p. 116), a um
olhar de abertura e liberdade, um olhar desobrigado do lugar seguro do juízo,
da opinião imediata. Como se esse cara a cara com a infância nos exigisse uma
resposta (que nada tem a ver com fixar uma posição), ou ao menos, nos exigisse que
encarássemos essa mirada, que lhe déssemos a cara — a nossa cara (cf. Larrosa,
2006, p. 120).
Uma coisa é certa: o encontro com o corpo dançarino das
crianças de “ABC África”, assim como
com os corpos expansivos das crianças na sala de cinema, na experiência do “11º
Festival Escolar de Cinema”, e também com o incontido corpo espectador das
mulheres de “Shirin”, investe nosso próprio corpo, espectador, e especialmente,
na qualidade de professoras, do desejo de pensar modos pelos quais acolher o
cinema, e trabalhar com o cinema em nosso ofício, para além da disciplina e do
controle (dos corpos, dos currículos, dos acontecimentos, e do próprio cinema),
desde essa espécie de semente dançarina.
Antes de tudo, há alguma coisa de
experiência no destino de
uma semente. Assim como há alguma coisa de dançarino no
corpo que é nosso corpo
na vida (cf. Uno, 2012). Quem sabe com a exposição ao
cinema, à história do
cinema e suas outras histórias, a exposição a
filmes de diferentes gêneros,
épocas, autores, nacionalidades, etc., com a
exposição, enfim, a diferentes
modos de ver, de pensar e de fazer cinema, possa a
educação oferecer e realizar
um trabalho de fruição em que contemplação,
emoção, admiração e
interrogação
fluam e se encontrem por entre corpos, pensamentos,
conversações e silêncios.
Isso tudo, de modo a mobilizar palavras e imagens outras, com que
possamos
constituir a nós mesmos, ao nosso lugar no mundo, e ao nosso
mundo comum —
aquele que todos compartilhamos e de que participamos.
A aranha
deixa os seus afazeres
por um instante
ante o espetáculo do alvorecer.
Abbas Kiarostami
O cinema tece
cumplicidades, ele insere interrupções nos nossos cotidianos, nos nossos
modos de viver, de sentir e de pensar. Algumas interrupções se fazem
duradouras, outras breves, outras nos fazem levantar e dançar, outras nos levam
para os livros, as leituras, e nos apresentam biografias, desejos e outros
cotidianos. Mas, sobretudo, as interrupções nos recordam o gesto da pausa, nos
ajudam a parar, a ir devagar, a mudar de rumo, a avaliar, a desconectar. Se, por um lado, o
cinema produz ilimitadas conexões, visíveis e invisíveis, produz aberturas e
possíveis; por outro lado, interrompe nossos afazeres, nos retira das rotinas e
nos ensina o benefício das desconexões.
Afora produzir
familiaridade com a forma filme, ou ensinar e aprender sobre modos de
legibilidade e criação de imagens e narrativas fílmicas, desejamos propor e
criar, com o cinema, com a experiência do cinema, uma certa cena nas escolas, e
na universidade, cuja atmosfera de contemplação, de estudo, de pausas, de
atenção, de exercício e de conversação, possa ser ao mesmo tempo formativa e
transformadora. Uma cena em que a experiência educativa e a experiência do
cinema já não apresentem divisas tão claras, mas se fazem e se afirmam como um
composto (e desde um componente) de imersão (nos filmes, na aula), e de uma
disposição a abrir os olhos e os ouvidos às lições, às aprendizagens, aos
conhecimentos aí em jogo, sem deixar de acolher as pausas, o silêncio, as
lacunas com que se constituem. Isso,
em primeiro lugar, exige de nós, professoras: a criação e o cultivo, para nós
mesmas, de uma relação cultural e inventiva com o cinema, uma relação cuja
potência afectiva nos possibilite cuidar da disposição de pensar a respeito dos
modos pelos quais propor uma aula, e organizar os gestos de uma aula, com
cinema. É a relação que estabelecemos com o cinema que pode nos dar elementos e
condições para que possamos pensar cuidadosamente a respeito de quais materiais
utilizar, de quais filmes, textos e exercícios selecionar para compor uma aula
dessa natureza, oferecê-la e, em alguma medida, fazê-la acontecer.
Se o cinema
nos atravessa, nos diz coisas, nos apresenta modos de ver, se silenciamos, se
não conseguimos ver o resto do filme, se saímos da sala de cinema e somos
incapazes de respirar (como em “Dançando no Escuro”, de Lars von Trier, 2000),
se sonhamos com a menina do “Balão Branco” (Panahi, 1995), ou com a sereia de
Pacu de “Abril Despedaçado” (Salles, 2001), se desejamos ler as anotações de
“Santiago” (Salles, 2007), se Ahmad nunca mais saiu das nossas memórias e dos
nossos corações (Kiarostami, 1987), se o cinema nos acompanha em um cafezinho,
nos faz pensar, sentir, transitar, talvez, quem sabe cheguemos, um dia, a nos
tornar capazes de um pouco de magia. Suspeitamos que a magia é simples, sem
rodeios e sem plumas, não é extraordinária nem mirabolante. Mas, é preciso
coragem para tamanha simplicidade.
Sancho Pança entra num cinema de uma cidade do interior. Está procurando
Dom Quixote e o encontra sentado isolado, fixando o telão. A sala está quase
cheia; a galeria — uma espécie de “galinheiro” — está totalmente ocupada por
crianças barulhentas. Após algumas inúteis tentativas de chegar a Dom Quixote,
Sancho senta-se de má vontade na plateia, ao lado de uma menina (Dulcinéia?),
que lhe oferece um lambe-lambe. A projeção começou: é um filme de época; sobre
o telão correm cavaleiros armados, e num certo momento aparece uma mulher em
perigo. De repente, Dom Quixote se ergue em pé, desembainha a sua espada, se
precipita contra o telão e os seus golpes começam a cortar o tecido. No telão
aparecem ainda a mulher e os cavaleiros, mas o corte preto aberto pela espada
de Dom Quixote se alarga cada vez mais, devorando implacavelmente as imagens.
No final, quase nada sobra do telão, vendo-se apenas a estrutura de madeira que
o sustentava. O público indignado abandona a sala, mas no “galinheiro” as
crianças não param de encorajar fanaticamente Dom Quixote. Só a menina na
plateia o fixa com reprovação. (Agamben, 2007, p. 81).
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[1]
Kiarostami realizou “ABC África” “sob encomenda”, ao aceitar a proposta
de que fizesse, como mostra a passagem do fax no plano de abertura do filme, um
filme sobre o problema da AIDS em Uganda, e sobre um projeto da Uweso (Uganda Women's Effort to Save Orphans) em que, sob
o empenho de mulheres africanas, são criadas ao seu redor pequenas comunidades,
em que é oferecido apoio econômico e afetivo a um grande número de órfãos.