Saberes y prácticas. Revista de Filosofía y Educación

Documentação narrativa de experiências pedagógicas na docência universitária: profissão docente em questão

Documentación narrativa de experiencias pedagógicas en la docencia universitaria: profesión docente en cuestión

Narrative Documentation of Pedagogical Experiences in University Teaching: Teaching Profession in Question

Fabricio Oliveira da Silva

Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil.

 https://orcid.org/0000-0002-7962-7222  

fosilva@uefs.br

Jane Adriana Vasconcelos P. Rios

Universidade do Estado da Bahia, Brasil.

 https://orcid.org/0000-0003-1827-3966

jhanrios1@yahoo.com.br

 

Recibido: 15/03/2021

Aceptado: 28/07/2021

DOI: https://doi.org/10.48162/rev.36.036

 

Resumo. Este artigo traz para a cena reflexiva da docência universitária, os saberes, as práticas e as narrativas de si que professores, de uma universidade pública do Estado da Bahia, Brasil, produzem ao documentarem suas experiências no Ensino Superior, numa interface com a formação de professores para atuação na escola básica. O objetivo do estudo foi compreender a profissão docente tecida por professores do Ensino Superior no cotidiano de práticas educativas desenvolvidas na universidade e sua relação no processo de formação inicial de professores para a atuação na Educação Básica. Ancora-se numa metodologia qualitativa, tendo como método a documentação narrativa de experiência pedagógica, conforme princípios postulados por Suárez (2007). Os resultados sugerem que as experiências pedagógicas e educativas de professores universitários emergem, também, da prática profissional na universidade, em contextos de relação com os estudantes. As narrativas de si revelam como a profissão docente é tecida em escolhas e movimentos que o professor produz ao documentar suas experiências, constituindo um princípio de horizontalidade que emerge do trabalho colaborativo e do modo próprio como cada professor faz imersão em sua história de vida, de formação acadêmica e atuação profissional para produzir saberes e vivências na docência universitária.

Palavras-chave: Profissão docente, Formação de professores, Documentação narrativa de experiência pedagógica.

 

Resumen. Este artículo trae al escenario reflexivo de la docencia universitaria, los conocimientos, prácticas y narrativas de si que los docentes, de una universidad pública en el Estado de Bahía, Brasil, producen al documentar sus experiencias en la Educación Superior, en una interfaz con la formación de profesores. El objetivo del estudio fue comprender la profesión docente tejida por los docentes de educación superior en las prácticas educativas cotidianas desarrolladas en la universidad y su relación en el proceso de formación docente inicial para actuar en secundaria. La metodología es cualitativa, utilizando como método la Documentación Narrativa de Experiencia Pedagógica, según los principios postulados por Suárez (2007). Los resultados sugieren que las experiencias pedagógicas y educativas de los profesores universitarios también surgen de la práctica profesional en la universidad, en contextos de relación con los estudiantes. Las propias narrativas revelan cómo la profesión docente se entreteje en las elecciones y movimientos que el docente produce al documentar sus vivencias, constituyendo un principio de horizontalidad que surge del trabajo colaborativo y en la forma en que cada docente se sumerge en su historia de vida. Desde la formación académica y el desempeño profesional para producir conocimientos y experiencias en la docencia universitaria.

Palabras clave: Profesión docente, Formación del profesorado, Documentación Narrativa de Experiencia Pedagógica.

 

Abstract: This article brings to the reflective scene of university teaching, the knowledge, practices and narratives of self that teachers, from a public university in the State of Bahia, Brazil, produce when documenting their experiences in Higher Education, in an interface with the training of teachers to work in the basic school, The objective of the study was to understand the teaching profession woven by higher education teachers in the daily educational practices developed at the university and their relationship in the process of initial teacher education for acting in Basic Education. The qualitative methodology, using the narrative documentation of pedagogical experience as a method, according to principles postulated by Suárez (2007). The results suggest that the pedagogical and educational experiences of university professors also emerge from professional practice at the university, in contexts of relationship with students. The narratives themselves reveal how the teaching profession is woven into the choices and movements that the teacher produces when documenting his experiences, constituting a principle of horizontality that emerges from the collaborative work and in the way in which each teacher immerses himself in his life story, from academic education and professional performance to produce knowledge and experiences in university teaching.

Keywords: Teaching profession, Teacher training, Narrative documentation of pedagogical experience.


Introdução


No contexto da docência universitária, a profissão docente é desenvolvida no exercício diário das relações que o professor constrói consigo mesmo, na produção de saberes educativos, bem como na relação com os sujeitos com quem interage no processo formativo, tendo em vista os sentidos da formação desenvolvida no cotidiano da universidade. Seus saberes didáticos e pedagógicos - constituintes da profissionalidade como a concebemos - são mobilizados diuturnamente, tal como acontece com os professores da Educação Básica. A diferença está nas condições cotidianas de produção e de ressignificação desses saberes ao longo do processo. No tocante ao desenvolvimento profissional, a formação torna-se constitutiva e basilar. Mas também, outros elementos passam a figurar nesse processo, gerando condições para a produção de saberes inerentes ao exercício da profissão, dadas as condições em que os professores se encontram e vivenciam.

Assim sendo, torna-se vital que os docentes valorizem e reflitam sobre a própria profissão, buscando, nisso, desenvolvimento de atitudes que ressignifiquem a ação cotidiana do ensinar e do aprender. São por meio de atitudes efetivas que o docente desenvolve experiências na profissão, buscando ressignificar os sentidos do seu fazer. Isso sugere que a profissionalidade se apresenta como uma dimensão que se coloca a prova a cada experiência constituída no fazer do professor. Paira uma ideia de que o docente será mais efetivo na sua profissão se desenvolver experiencialmente os saberes que lhe são constituintes para lograr êxito no desenvolvimento profissional.

Por essa lógica, conhecer como a profissão docente é tecida por professores do Ensino Superior no cotidiano de práticas educativas desenvolvidas na universidade e sua relação no processo de formação inicial de professores para a atuação na Educação Básica emerge como foco do presente trabalho. Neste cenário, o referido texto centra-se nas narrativas que professores produzem, documentando suas experiências e saberes, sobretudo no que tange à formação de professores para a atuação na Educação Básica. Documentar narrativamente as experiências na docência universitária, traz para a cena do trabalho de professores na universidade compreensões em torno de como a formação cotidiana, tecida na prática profissional, se constitui como um elemento central para o desenvolvimento de uma política de conhecimento cunhada nos princípios da experiência pedagógica e de práticas educativas necessárias a atuação dos professores da Educação Básica.

A relação universidade e escola básica tem sido problematizada por diversos autores, dentre os quais destacam-se a Gatti (2017) que considera que as faculdades de educação não sabem formar professores. A crítica que essa autora produz tem um foco no distanciamento entre a formação ofertada nas universidades e as necessidades formativas para que os professores atuem no cotidiano escolar. Em certa medida, há compreensões em torno de tal crítica, mas ela não é de todo verdadeira, uma vez que a formação de professores tem sido desafiada a constituir-se a partir do cotidiano escolar e das dimensões factuais da profissão docente, que levam em consideração os saberes que o professor produz no âmbito da própria profissão, como defendeu Nóvoa (1995) ao considerar que a entrada na profissão promove uma continuidade dos processos de formação, uma vez que os cinco primeiros anos são decisivos para que o professor vá desenvolvendo saberes sobre como se dá efetivamente o seu trabalho na docência.

Nesta perspectiva, a profissão docente passou a ser problematizada em seus aspectos formativos, em que o chão da escola não significou apenas uma dimensão de aprendizagem da prática, mas sobretudo de produção de aprendizagens experienciais que, conforme Silva (2017), são elementos fundantes que emergem do cotidiano escolar e que visibilizam outros modos de se constituir a docência na escola básica. Desse modo, a formação inicial de professores precisa ser compreendida na articulação com as demandas que se insurgem no âmbito das práticas educativas tecidas na profissão docente na Educação Básica, em estreita relação com as práticas educativas dos professores formadores de outros professores. Em outras palavras, a docência universitária, constituída nos cursos de licenciatura deve ser entendida numa relação de complementariedade com a ocorrência das práticas e experiências que os professores da Educação Básica realizam, numa perspectiva de buscar entender como a formação universitária potencializa a experiência pedagógica da docência na universidade que hoje esses professores desenvolvem.

Nessa perspectiva, é mister conhecer as experiências pedagógicas dos professores da universidade, formadores de professores, produzindo interfaces dialógicas no que tange aos aspectos colaborativos da própria formação, bem como das práticas educativas que os professores universitários desenvolvem. Por ter documentado narrativamente as experiências de professores do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana – BA, esse texto se desenvolveu a partir das seguintes questões: Como os professores universitários, que atuam em cursos de licenciatura, desenvolvem a profissão docente? Quais práticas e saberes são produzidos a partir do fazer cotidiano na docência universitária? Como as experiências pedagógicas na docência universitária dialogam com as experiências pedagógicas de professores da Educação Básica?

Assim pensando, interessou-nos, nas trilhas do dispositivo da Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas, não só escutar os professores universitários, mas possibilitar que estes reflitam sobre a profissão que desenvolvem e que possam, por isso, construir políticas de conhecimento sobre a docência universitária, gerando conhecimentos que emergem do cotidiano da sala de aula na universidade na relação com a formação e com práticas tecidas pelos professores da Educação Básica. Nessa dimensão de compreensiva, há de se considerar que a relação entre Educação Básica e Educação Superior implica num reconhecimento de que em ambas a profissão docente se constitui a partir dos processos formativos que nelas se desenvolvem, mas também das aprendizagens experienciais que se logram no cotidiano escolar.

O objetivo principal da pesquisa que originou esse artigo foi o de compreender como a profissão docente é tecida por professores do Ensino Superior no cotidiano de práticas educativas desenvolvidas na universidade e suas contribuições no processo de formação inicial para atuação na Educação Básica. Para tal feito, o princípio fundante que norteou todo o texto incidiu nas dimensões da aprendizagem experiencial para a docência (Silva e Rios, 2018), na horizontalidade, (Suaréz, 2007) e na experiência (Larrosa, 2002).

O texto está organizado em três outras seções, além desta introdução. Na próxima seção seguinte, explicitamos a abordagem metodológica, descrevendo as ações que realizamos para produzir a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas. Na seção seguinte, nos atemos a tecer os bordados das tessituras da Educação Superior, na interface com a Educação Básica. Nessa seção, apresentamos alguns trechos dos documentos produzidos por alguns colaboradores, bem como os relatos orais, transcritos dos encontros síncronos, em que os participantes refletiam a respeito da dinâmica de documentar as experiências, bem como teciam comentários nos textos dos colegas. Por fim, apresentamos as considerações finais, evidenciando alguns dos resultados do estudo.


Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas: Tessituras metodológicas da pesquisa


Ao elegermos a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas como dispositivo de pesquisa, temos a clareza de que ela vai além de se constituir como um relevante dispositivo para realização de pesquisas no campo da educação. Tal dispositivo, nesse artigo, constitui-se como método de produção e documentação de experiências pedagógicas da/na profissão docente, em contextos de atuação no ensino universitário. Neste sentido, a ideia é tornar as experiências pedagógicas da docência universitária protagonistas, portanto reveladoras, das tessituras do fazer dos professores no cotidiano da profissão. Esse movimento como revela Suárez (2007) congrega a potencialidade de se constituir enquanto uma metodologia que gera uma política de conhecimentos advinda da experiência que os professores desenvolvem no exercício da profissão. Trata-se, portanto de um método que prioriza o vivido, em que a narrativa se processa pelas vias das reflexões, problematizações, tematizações e constituições de saberes do cotidiano que se emancipam e tornam-se grandes referências para se pensar a profissão docente em suas dimensões formativas e de processos de profissionalização.

Assim, esta é uma metodologia qualitativa, ancorada em princípios dos trabalhos de Suárez (2007) através do Programa de Documentação Pedagógica e Memória do Laboratório de Políticas Públicas de Buenos Aires (UBA) que nos mostra que:

La relevancia que adquiere la documentación narrativa de las propias experiencias escolares por parte de los docentes radica en el enorme potencial que contienen estos relatos pedagógicos, para enseñarnos a interpretar el mundo escolar desde el punto de vista de sus protagonistas. De esta manera, al tejer sus narraciones, los docentes nos comunican su sabiduría práctica y, al mismo tiempo, permiten a otros destejerlas para volver explícito lo implícito y comprender qué hay detrás de esa sabiduría. Es decir, la narrativa estructura la experiencia, y los relatos son una forma de conocerla, reflexionar sobre ella, trasmitirla y compartirla con otros. (Suárez, 2007, p.16)

A documentação narrativa surgiu na Argentina, no âmbito das políticas educacionais articuladas ao próprio Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia. Todavia, surge como uma alternativa formativa aos modelos heterodoxos de formação, buscando valorizar, legitimar e tornar públicas experiências, saberes e processos pedagógicos vividos no cotidiano das escolas. Em experiências vividas por alguns grupos de pesquisa no Brasil, tais como o Docência Narrativas e Diversidade na Educação Básica – Diverso, grupo vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, e o Grupo de Estudos e Pesquisa das Professoras Alfabetizadoras, Narradoras – Geppan, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF, coletivos de docentes tem se reunido para estudarem e documentarem suas experiências pedagógicas, produzindo um momento duplo, de formação e ao mesmo tempo de produção de saberes que emergem das experiências de professores que atuam na Educação Básica.

Tais grupos concluem que a documentação também aposta nessa valorização, legitimação e publicização de experiências e saberes docentes. No âmbito do grupo Diverso, Oliveira (2019) produziu a tese intitulada: Viagem-formação: Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas de professores(as) no ensino médio de escolas rurais, por meio da qual, o autor se vale da documentação narrativa enquanto método para a construção de políticas de conhecimentos em torno das experiências formativas de professores a partir das práticas educativas cotidianas que estes realizam no seio da profissão docente. Trata-se da primeira tese produzida na Bahia, e defendida no âmbito do grupo Diverso, que institui a documentação narrativa de experiência pedagógica enquanto método de produção de conhecimentos do fazer educativo, gerando publicações das narrativas dos professores colaboradores, o que consagra o princípio de autoria da própria prática. Nesse trabalho, o autor se dedicou a compreender as experiências pedagógicas de docentes no Ensino Médio rural, sendo esse estudo o primeiro que se desenvolve no Diverso pelas trilhas da Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas, com foco nas práticas, saberes e experiências de professores do Ensino Médio. Logo, é no grupo Diverso que tal metodologia vem sendo utilizada com professores da Educação Básica, o que nos mobilizou a, no âmbito do referido grupo, produzir esta pesquisa que tem centralidade na Documentação Narrativa de professores que atuam na docência universitária.

Na pesquisa aqui desenvolvida, a perspectiva foi gestar a documentação narrativa na relação entre universidade e escola básica, como experiência incipiente, por meio da qual os professores universitários pudessem documentar seus saberes e práticas produzidos no cotidiano da profissão docente. Assim, realizou-se a documentação narrativa com a participação de 18 professores universitários, buscando mapear os saberes experienciais que estes produzem na universidade enquanto práticas educativas produzidas na formação de outros professores. Isso implicou em uma ampliação das experiências com a documentação, transcendendo o espaço de sala de aula da escola, chegando à universidade como forma de estabelecer entendimentos e diálogos experienciais com quem forma os professores que atuam na Educação Básica.

Pensar a documentação Narrativa de Experiência Pedagógica significou entendê-la enquanto uma micropolítica de resistência tecida no, com e pelo coletivo de professores universitários, para os quais buscou-se mapear as experiências da profissão docente, que significou, para a Educação Básica, entender as experiências de formação que esses professores recebem para desenvolver a profissão docente. Portanto, a Documentação Narrativa de Experiência Pedagógica nos ajudou a pensar a questão da potencialidade da produção de saberes experienciais que emergem do fazer cotidiano dos professores, além de ser um excelente mecanismo para promoção das redes de formação docente como organizações complexas, heterogêneas e, do nosso ponto de vista, horizontais. Elas apontam para modos outros de pensar e praticar a formação, viver a produção de conhecimentos e a própria pesquisa. Trata-se, portanto, de uma formação que é investigação e de uma investigação que é formação.

As discussões feitas acerca das investigações com documentação narrativa revelam modos próprios e fecundos de compreensões teórico-metodológicos das experiências educativas como dispositivo de investigação-formação que potencializa a memória e as experiências dos docentes. Assim, compreendemos que a produção da documentação narrativa estabeleceu o encontro hermenêutico do sujeito com o seu vivido não como um acúmulo de vivências, mas como movimento reflexivo de constituir práticas em saber. Esta opção metodológica delineou-se, também, como uma prática formativa em que as experiências pedagógicas do coletivo foram tomadas como dispositivos de investigação-ação-formação, revelando o fazer cotidiano da docência nas diferentes temporalidades que compõem a narrativa.

A documentação narrativa se insurge como um dispositivo que entrecruza o individual e o coletivo na medida em que, por meio do diálogo, de partilhas de saberes e experiências, gera condições reflexivas de se conhecer as práticas que cada um desenvolve e, com os pares, de se pensar distintas possibilidades de entender o que se vive no contexto da profissão docente. Nesta lógica, a narrativa é entendida na pesquisa (auto)biográfica como um elemento de potencial formativo e investigativo, uma vez que é por meio dela que o sujeito que narra se anuncia, bem como se denuncia e revela modos próprios de apreensão de saberes e práticas que desenvolve no âmbito da profissão docente.

Existe, na narração, um movimento que leva o sujeito a formar-se a si próprio, pela possibilidade de, na elaboração, estruturação e organização da narrativa, constituir aprendizagens experienciais que ganham novas conotações para o próprio sujeito que narra, gerando para este uma possibilidade (auto)formativa. Narrar, pois, a prática, se constitui em uma experiência com possibilidades de formação e (auto)formação para os professores participantes dessa pesquisa. A esse propósito, o pesquisador e professor Daniel Suárez (2007) tem se dedicado a evidenciar a tessitura das narrativas de experiências pedagógicas, considerando-as enquanto um dispositivo de ação-formação, que tem na narrativa e na reflexão da prática o alimento do processo de formação docente.

Trata-se, em sua teoria, do que o pesquisador denomina de Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas. Nesta direção, a documentação narrativa, proposta por Suárez (2007), constitui-se em uma ação de investigação, formação e indagação pedagógicas orientada a questionar o universo escolar, no caso desse estudo, a profissão docente, a partir da fala de quem a vive, por meio de relatos escritos pelos próprios professores e professoras, os quais devem ser produzidos e discutidos em momentos coletivos, feitos através de rodas, ateliês, entre outros. De acordo com o que preconiza o referido autor, a documentação narrativa compreende uma série de procedimentos a serem observados para sua concretização, compreendendo movimentos de escrita, leitura, conversa e discussão entre os pares. Nesse movimento, percebemos haver a natureza formativa do processo, o que nos levou a conceber que a documentação narrativa de experiência pedagógica constitui uma ação que caracteriza esta pesquisa como uma pesquisa-formação.

A referida pesquisa que ensejou a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas foi desenvolvida na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Os sujeitos da pesquisa foram 18 professores do Ensino Superior, que atuam no Departamento de Educação da universidade, ministrando aulas nos 14 cursos de diferentes licenciaturas que a instituição oferta. São professores das áreas de prática de ensino e de política educacional. Tal contexto nos permitiu analisar as contribuições das práticas educativas desenvolvidas por tais professores, observando como elas se processam enquanto formações significativas para o desenvolvimento da profissão docente por professores da Educação Básica.

Inicialmente foi escrita uma carta convite e encaminhada por e-mail a todos os 53 docentes lotados no referido departamento. No e-mail, convidou-se os docentes para participarem de uma roda de conversa, em que se explicaria o processo de documentação narrativa, bem como fez-se o convite para que os professores documentassem suas experiências na docência universitária. Responderam ao e-mail aceitando o convite, 22 docentes, sendo que permaneceram no processo de documentação, participando de todos os encontros, 18 professores. Foram realizados dez encontros, com duração de 3 horas cada, com os colaboradores, utilizando a plataforma Google Meet. Ressalte-se que no período da pesquisa, entre os meses de julho a dezembro de 2020, no Brasil, assim como no mundo, estávamos todos em Home Office, atendendo aos decretos governamentais de isolamento social com objetivo de combater a disseminação da Covid 19, razão que justiçou o fato da documentação ter sido feita de forma remota.

Os encontros aconteceram quinzenalmente, a partir dos quais foram produzidas as etapas da documentação narrativa, inseridas aí a roda de conversa, primeiro encontro em que se apresentou detalhes do processo de documentação e se organizou os outros 9 encontros. Foi nesse momento que se definiu realizar sessões quinzenais com duração de 3 h, cumprindo, nestas, as etapas da documentação narrativa, descritas a seguir. Definiu-se que os encontros síncronos seriam realizados com uso da plataforma Google Meet e que usaríamos, para cumprir a tarefa de postagem e comentários entre os pares, a plataforma Google Class.

Entre os procedimentos e observâncias que Suárez (2007) considera para que haja formatividade na Documentação Narrativa de Experiência Pedagógica, estão aqueles que adotamos como etapas na pesquisa e, assim, o realizamos. Foram eles:

a) Geração e garantia de espaços para que docentes possam mergulhar e viver o processo da documentação narrativa de experiências pedagógicas, de preferência em seu espaço/tempo de trabalho, na escola, em nosso caso, na universidade. Neste item em particular, por conta da pandemia do Corona Vírus que provocou o isolamento social, o espaço foi o online, recorrendo às plataformas Google Meet e Google Class para que os professores escrevessem e falassem de suas experiências;

b) Negociação e escolha dos “temas” e/ou experiências a serem narradas, com foco no cotidiano da docência universitária em interface com a formação de professores para a Educação Básica. Esses temas eram apontados pelos próprios professores que iam decidindo, em sua própria narrativa, trabalhar uma temática ou uma experiência que lhe fazia mobilizar-se a narrar e compartilhar com os pares;

c) Escrita e reescrita dos textos, através de processos de leitura e discussões entre pares (duplas e trios formados para comentarem os textos entre si, durante o processo de produção até que este seja considerado “publicável”). Essa foi a maior dinâmica da documentação, atravessando sempre os encontros síncronos, em que se liam, reescreviam e liam novamente os textos. Várias versões iam sendo produzidas e colocadas em pastas em um drive compartilhado. Essa pasta continha as versões de cada autor/a, e era identificada pela numeração ordenada das versões produzidas. Em cada versão, conservava-se os comentários e registros dos colegas. Na reescrita, um novo texto emergia e novas discussões no encontro síncrono, após leitura do material, iam sendo tecidas;

d) Edição/revisão dos relatos produzidos, por meio de leituras e releituras próprias e de outros, individuais ou coletivas e interpretação e reflexão pedagógicas sobre as experiências narradas com consecutiva “elaboración y comunicación al docente autor de observaciones, preguntas, sugerencias y comentários escritos y orales, individuales y colectivos, sobre el relato pedagógico em cuestión” (Suárez, 2007 p. 94). Essa dinâmica foi, também, operacionalizada na plataforma Google Class, em que os textos eram postados, e lidos pelos pares. De igual modo eram produzidos os comentários e postados para leitura do par e dos demais participantes;

e) Publicação/publicização da experiência pedagógica relatada por meio de blogs, páginas eletrônicas, livros ou outras possibilidades que façam do relato um “documento pedagógico”. Nesse aspecto, os textos, da versão final, foram publicizados no observatório da profissão docente [1] . A versão final gerou um ebook intitulado: O que narram os professores do DEDU/UEFS? Experiências pedagógicas da docência universitária na relação entre universidade e educação básica;

f) Circulação dos documentos narrativos de experiências pedagógicas entre docentes. Para concretizar esse procedimento, foi feito, em 17/12/2020, o Conversatório de experiências pedagógicas na Educação Superior. Foi um momento de promover a apresentação do ebook produzido e de socializar e fazer circular as narrativas dos professores colaboradores entre diversos outros docentes da universidade e de outras instituições que se fizeram presentes. O conversatório foi realizado pelo Google Meet e contou com a participação de vários professores/as interessados em conhecer as experiências documentadas.

Para a realização do conversatório, foi produzido um Card, com as devidas informações do encontro e socializado entre vários professores da própria instituição, bem como de outras do estado. Assim, o encontro teve a duração de quatro horas e foi dividido em dois momentos. No primeiro, que durou duas horas, em uma única sala do Google Meet, com todos os presentes, foi apresentada as dinâmicas realizadas na Documentação Narrativa, explicitando como todos os movimentos feitos até chegar ao produto final, que foi a experiência documentada, publicizada no observatório da profissão docente. Nesse primeiro momento, alguns/as professores/as falaram dos saberes, sabores e desafios que foi participar da experiência de documentar suas práticas na universidade.

No segundo momento, que também teve duração de duas horas, foi feita uma divisão para que os presentes pudessem transitar por três outras salas criadas para que os narradores pudessem apresentar seu texto à comunidade, explicitando e revelando a experiência documentada. A divisão em três, seguiu a dinâmica de organização do livro: O que narram os professores do DEDU/UEFS? Experiências pedagógicas da docência universitária na relação entre universidade e educação básica; que foi possui três partes: A primeira intitulou-se Narrar as experiências com estágios supervisionados e PIBID; a segunda Narrar a docência com a diversidade e a terceira Narrar a docência com práticas de ensino, pesquisa e extensão. Ressalte-se que essa divisão foi feita com o objetivo de que cada conjunto de narradores, 6 em cada sala, pudesse ler e comentar seus textos e os expectadores interagirem e conversarem com os narradores, conhecendo cada experiência apresentada. A divisão em três salas por partes do livro objetivou garantir que os seis professores de cada parte pudessem falar de seu texto e o público pudesse buscar a sala com experiências que tivesse maior afinidade e interesse em conhecer.

Tendo feita a documentação, conforme descrito acima, para esse texto utilizamos trechos dos documentos, bem como relatos orais produzidos nos encontros síncronos para compreender como a profissão docente é tecida por professores do Ensino Superior no cotidiano de práticas educativas desenvolvidas na universidade e sua relação no processo de formação inicial de professores para a atuação na Educação Básica. Tais encontros foram gravados e transcritos. O movimento de análise inspira-se no movimento compreensivo interpretativo de Ricouer (1996).


Profissão docente: Tessituras da Educação Superior na interface com a Educação Básica


No âmbito da formação inicial, algumas políticas têm buscado aproximar a formação à realidade educacional em que a profissão é tecida. Como prova disso, desde 2007 o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID vem se constituindo como uma possibilidade de que a formação inicial de professores seja efetivada, também, a partir das acontecências do cotidiano escolar, como defendeu Silva (2017) ao considerar que o PIBID possibilita as aprendizagens da profissão docente, em franca formação inicial, por inserir o licenciando no ambiente educacional, lócus da produção de práticas e saberes experienciais do ser professor. Nesta direção, o referido autor evidenciou que o PIBID promoveu uma articulação entre a universidade e a escola básica, levando para o centro da docência nos cursos de licenciaturas da universidade as discussões e aprendizagens experienciais da profissão docente. Isso, em certa medida, fez com que os professores das licenciaturas passassem a considerar, sobretudo em aulas de práticas, didáticas e estágios supervisionados, o cotidiano escolar como pontos de reflexões para os debates nas aulas. De certo modo, a tessitura das práticas educativas dos professores universitários, formadores de professores, alteraram-se em função de possibilitar que as acontecências da profissão docente fossem sendo demarcadoras do tom do trabalho pedagógico que tais docentes realizavam na universidade. Tal ideia se visibiliza na narrativa de Fani Rehen, ao considerar que

Em minha prática, tenho percebido como é necessário articular o que ensino com a perspectiva de atuação das estudantes, entende. Aí, o PIBID me possibilitou modificar muitas questões do trabalho que desenvolvo na UEFS. Eu não podia não considerar essa realidade. Por isso, em minha narrativa essa experiência aparece muito e consegue dar um outro tom pra minha prática profissional na universidade. (Faní Rehen, relato oral, 2020)

Em direção semelhante, Maria de Lourdes acrescenta.

O PIBID mexeu com as formas de ensinar na universidade. Eu precisei trabalhar os planos de ensino de modo a possibilitar que o meu trabalho na UEFS tivesse pautado nas questões do cotidiano do exercício profissional na escola básica. Eu me dei conta, sempre de que estava formando professores e professoras. E isso, gente, faz toda a diferença pra articular o ensino da UEFS com a realidade vivenciada no dia a dia das escolas públicas em Feira de Santana. (Maria de Lourdes, relato oral, 2020)

Nessa perspectiva, e como asseveram Silva e Rios (2018) a aprendizagem experiencial da docência se efetiva, também, na docência universitária, em que as referidas professoras, Faní Rehen e Maria de Lourdes, concebem que o PIBID possibilita uma articulação outra da docência desenvolvida na universidade. Emerge uma dinâmica de acontecências do trabalho educativo na universidade, que se ressignifica pela relação com o outro, bem como pela necessidade de articulação com as demandas da formação inicial de professores, que dentre tantas prerrogativas, há uma visível necessidade de que a docência universitária esteja intimamente articulada com as questões da Educação Básica.

Em seu texto, Faní Rehen (2020, p. 75) dá um título ao documento, bastante significativo e que expressa a articulação entre a docência universitária e a docência na escola básica. Com vistas a demarcar a relação dialógica com os discentes, que a experiência documentada revela, a autora intitula seu texto de modo sugestivo e relacional. Em seu título lê-se: ““O seu olhar melhora o meu”: A experiência no PIBID a partir do olhar das bolsistas”. Com esse título a autora convida os leitores a conhecerem como a docência universitária é contaminada, modificada, atravessada, pelo que as licenciandas possibilitam ao vivenciarem o PIBID no cotidiano universitário. Isso implica numa construção dialógica entre universidade e escola básica, que se imbricam pelas acontecências formativas em ambos os espaços.

Em seu documento, Faní Rehen nos diz que:

A Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) iniciou em 2013 o projeto “Formação Docente na UEFS e a Integração com a Educação Básica” com 15 subprojetos, dentre estes, o subprojeto de Pedagogia intitulado “O que ensinar e porque ensinar na escola pública: a Língua Portuguesa como referência e a diversidade cultural como estratégia docente”, que se insere nesse contexto, objetivando Propiciar ações de formação que possibilitem ao licenciando em Pedagogia a experiência de mediar processos de aprendizagem da leitura e da escrita na escola pública da rede estadual e municipal da cidade de Feira de Santana. (Rehen, 2020, p. 78)

Em outro trecho de sua narrativa, a professora Faní Rehen assim escreve:

No desenvolvimento do projeto a articulação com a escola básica é a grande conquista, pois estávamos diariamente no espaço da escola, através das bolsistas, através de formações que ocorriam com as professoras regentes das turmas de educação infantil, além das visitas que fazíamos para ouvir, observar, o que tinham a dizer. Essa relação colaborativa em que os diferentes sujeitos das diferentes instituições se articulam em busca de uma melhor compreensão da docência. (Rehen, 2020 p. 78,)

Rehen (2020), defende que a profissão docente, na universidade, precisa ser tecida na articulação com os processos de formação inicial de professores, sobretudo em se considerando as acontecências do cotidiano escolar. É preciso sair além dos muros da universidade para estabelecer diálogos direto com a realidade educacional em que atua e/ou vai atuar o professor em formação inicial. Segundo Silva (2017) o PIBID possibilita que a formação de professores aconteça no movimento experiencial da própria docência que se tece no cotidiano escolar. O referido autor defende a necessidade de que licenciandos sejam inseridos no cotidiano da profissão docente, para produzir a aprendizagem experiencial da docência. Em estudos posteriores, Silva e Alves (2020) tem relacionado a aprendizagem experiencial à inserção do licenciando no cotidiano da profissão, bem como ao contexto de uma relação entre professor e estudante, a que os referidos autores denominam de aprendizagem experiencial da docência por homologia, o que significa aprender com o outro em situações adversas da prática profissional docente.

Em direção bastante semelhante, o grupo de pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade na Educação Básica – DIVERSO vem realizando, no Brasil, a pesquisa Profissão Docente na Educação Básica da Bahia, que tem como objetivo principal cartografar a profissão docente na Educação Básica do Estado da Bahia, por meio de um mapeamento do perfil socioprofissional e das experiências pedagógicas dos docentes, olhando, entre outras dimensões, para a formação inicial e continuada. Ao apresentar um objetivo que versa sobre compreender como a profissão docente de formadores de professores é tecida na universidade em diálogos com o cotidiano formativo para atuação na Educação Básica, estabelece-se uma relação de diálogos possíveis entre a formação dos professores e o desenvolvimento da profissão docente, tanto na Educação Básica, como na Superior.

Arquitetando a docência no Ensino Superior, em franca articulação com a formação de professores para a escola básica a professora Marinalva Ribeiro intitula seu texto de “A arquiteta da Docência Universitária” (RIBEIRO, 2020, p. 151) e convida o leitor a trilhar por sua narrativa marcada por diversos movimentos formativos, dentre os quais ela ressalta as que logrou no cotidiano da escola, quando também foi professora da Educação Básica. Preocupada em possibilitar uma formação articulada com as demandas cotidianas dos estudantes face às realidades educacionais em seu relato a professora nos diz:

Eu ultimamente tenho me preocupado muito com os estudantes, com a relação deles com a universidade e com a escola. Ser professor não é fácil, principalmente nos primeiros anos de profissão. São anos difíceis, mas de muita aprendizagem. Eu fico muito preocupada com a formação desses jovens, futuro professores. É verdade que precisamos, mesmo, desenvolver a docência na universidade arquitetando saberes e práticas que dialoguem com a profissão de professor. Principalmente, porque temos que cuidar de nossa profissionalidade, de nosso jeito de exercer a profissão docente. Tem que ser com sentido e com motivação. (Marinalva, relato oral, 2020)

A professora Marinalva documenta sua experiência com a docência universitária, promovendo francos diálogos com a escola básica, principalmente ressaltando os percursos profissionais que desenvolveu nos primeiros anos de exercício da profissão docente. Foram experiências que a tocaram, que aconteceram com ela, que, conforme Larrosa (2002) provoca uma transformação, pois acontece com o sujeito, com aquele que é o sujeito da experiência. É nessa dinâmica que a profissionalidade emerge com forte indicativo de que ela se desenvolve muito articulada com a experiência do ser professor cotidianamente.

Nessa lógica, a profissionalidade está vinculada ao processo de desenvolvimento profissional, em que, no início do exercício da docência, os professores tendem a vivenciar um período de choque com a realidade, de descobertas e de grandes impactos que são decisivos para sua permanência ou não na profissão. Esse ritual de passagem, tanto para alunos, como para professores, se revela um período de descobertas, desafios e dificuldades. Tanto professores universitários como os da Educação Básica passam a vivenciar um duplo processo de aprender a ensinar e ensinar para aprender (Garcia, 2009).

Assim, nesse período os professores iniciantes tendem a refletir mais sobre seus saberes, sua formação e sua profissão. É um momento peculiar de retomada sobre a vida e o que quer dela e de questionamentos, também, de reflexão sobre a profissão que desenvolvem. Em relação à profissionalidade do professor do Ensino Superior, Garcia (1999), ao remeter a formação do professor universitário nos seus primeiros anos de ensino, aponta que a socialização é um elemento propício para a aprendizagem da cultura da organização universitária. Dessa forma, enfatiza que no desenvolvimento profissional do professor universitário deve existir a necessidade de desenvolver as funções de docência, investigação e gestão.

A gestão, tanto dos processos educativos que o professor desenvolve na sala de aula, como uma gestão de cargos, emerge como modo de tecer a docência universitária, numa perspectiva de continuar militando o exercício profissional pelas veias da articulação com a comunidade, com a escola básica, garantindo que a profissionalidade, também, esteja relacionada às experiências e desafios que o docente universitário a si se imputa no âmbito da profissão. Em um trecho se seu documento, a professora Rita Brêda Lima enfatiza como a sua experiência com a gestão é desafiadora e promotora de desenvolvimento de aprendizagens. Em seu texto, ela nos diz:

Outra experiência importante do meu processo formativo como docente do ensino superior tem sido a oportunidade de além de vivenciar o tripé - ensino, pesquisa e extensão, ocupar também a gestão universitária. Faço tal consideração por hoje ocupar o cargo de Pró-Reitora de Extensão, da universidade que foi minha base de formação. Ser gestora de uma universidade pública é uma responsabilidade imensa. Responsabilidade de cuidar e zelar das pessoas que compõem a instituição; responsabilidade de gerir com competência o bem público; responsabilidade de defender que a universidade pública seja efetivamente pública, gratuita, democrática, inclusiva; responsabilidade de estabelecer com a comunidade externa uma relação de aproximação, escuta e respeito, enfim, são muitos os desafios e as responsabilidades quando entendemos que gerir um bem público perpassa pela concepção de sociedade, de universidade, de democracia. (Lima, 2020, p. 173)

No/para o desenvolvimento dessas funções, as experiências pedagógicas dos professores são imprescindíveis, principalmente sua mobilização e reconstrução. É nesse processo de ser e estar na profissão docente que se aprende a ser professor e que os professores, sobretudo os iniciantes, constroem os saberes da profissão, estando em condições de tornarem esses saberes factíveis e emancipáveis pela reflexão, narrativa e documentação das experiências que se constituem nas tessituras do cotidiano da profissão.

As narrativas ganham centralidade ao serem elementos por meio dos quais os professores narram e refletem sobre suas próprias experiências no âmbito da profissão docente. Ao analisar a construção de saberes na docência universitária, Silva (2015) produziu uma pesquisa que objetivou compreender o processo de construção de professores iniciantes na docência universitária, mediatizados por movimentos e experiências no cotidiano de suas práticas. As entrevistas narrativas com professores de uma universidade pública evidenciaram que as expressões “choque com a realidade”; “solidão pedagógica”; “aterrissa como podes”; “nada ou afunda-te” caracterizam o vivido pelos professores nos anos iniciais na universidade, pois não encontraram acolhimento de forma sistematizada, com apoio institucional. Em sua pesquisa, Silva (2015) considerando os saberes produzidos no cotidiano da profissão docente, conclui que:

Na dinamicidade da prática docente, os professores estão se construindo de forma singular, se refazendo e configurando uma identidade própria de ser professor. Entretanto, a fragilidade da formação para a docência e a insipiência do apoio institucional no ambiente acadêmico retarda e afeta a construção da profissionalidade, que se situa mais numa responsabilidade individual, do que como parte das políticas públicas que sustentam a expansão da educação superior pública no país. (p. 164-165)

Portanto, o desenvolvimento da profissão docente está relacionado a diversos fatores, dentre os quais se vislumbram as possibilidades de construção de uma trajetória singular, em que as experiências vão se constituindo como elementos fundantes para se pensar a profissão e o próprio professor nesse cenário. Assim sendo, a identidade docente se presentifica como princípio norteador das reflexões que o professor faz de si e de sua profissão, seja no âmbito da Educação Superior, seja no âmbito da Educação Básica. O fato é que a profissão vai se constituindo numa dinâmica relacional de entrada na docência e construção de saberes e práticas que têm a ver com os processos de profissionalização que se logram nos cotidianos da escola e da universidade. E isso tem a ver com as relações que se estabelecem entre alunos e professores, o que a própria Gatti (2011) entende como uma interação complexa entre os diferentes sujeitos, no caso em tela, entre professores e estudantes.

A relação entre professores e estudantes aparece como foco central nas discussões que os narradores e narradoras tecem nos encontros da Documentação Narrativa. A professora Flávia Santana, diz que para ela

A profissão docente é um bordado que se faz com pessoas. Professores e alunos produzem bordados de aprendizagens múltiplas. É o bordar o ensino, bordar a relação, bordar a dimensão da profissionalidade com zelo, determinação e perspicácia. Eu mesma vejo o bordado que juntos estamos fazendo nessa experiência de documentar nossos saberes, práticas na docência universitária. Estamos cuidando do nosso processo formativo e de profissionalização com partilhas de saberes. (Flávia, relato oral, 2020)

Nesta direção, pensar a profissão docente significa pensar nos desafios que estão envoltos em torno dos processos, para que se possa buscar trilhar aprendizagens horizontalizadas, seja com os próprios estudantes, seja com os colegas de profissão. A Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas, segundo Suárez (2007) congrega princípios da horizontalidade, em que as experiências são tecidas colaborativamente, inspiradas nas acontecências que envolve cada sujeito. Isso tem a ver, também, com o processo de profissionalização, que demanda resultados de aprendizagens inerentes ao ato de “bordar” a profissão, como nos diz a professora Flávia. Portanto, tal processo perpassa pela construção da própria identidade profissional, ou seja, como os professores se reconhecem, como se realizam como professores e como pessoas. Gatti (2011) afirma que:

A identidade não é somente um constructo de origem idiossincrática, mas fruto das interações sociais complexas nas sociedades contemporâneas e expressão sociopsicológica que interage nas aprendizagens, nas formas cognitivas, nas ações dos seres humanos. Ela define um modo de ser no mundo, num dado momento, numa dada cultura, numa história. Há, portanto, de ser levada em conta nos processos de formação e profissionalização dos docentes. (p. 162)

Nesta seara, a profissão docente é vista a partir das condições objetivas e subjetivas com as quais os professores lidam para o exercício da profissão e das contradições possíveis produzidas nos contextos sociais, afetivos e culturais. É preciso, então, observar como esse processo se efetiva nas práticas educativas e pelas narrativas construídas pelos docentes sobre si e sobre a profissão, logo sobre suas aprendizagens experienciais tecidas no cotidiano da docência. Diante disto, compreender a profissão docente significa compreendê-la imersa em uma problemática que versa sobre fatores que são característicos da universidade, como também da escola básica.

Se por um lado é difícil para os professores da Educação Básica os fatores tais como: relação número de alunos por professor; heterogeneidade cultural; demanda por uma educação de qualidade; impacto de novas formas metodológicas do ensino; ausência de políticas de priorização; estruturas hierárquicas e burocráticas, sendo que nesse cenário se situa o trabalho cotidiano do professor com sua experiência de profissão; na universidade essa dificuldade também se apresenta, mas as questões se voltam para situações tais como: relação professor com os objetivos específicos de formação da licenciatura que atua; envolvimento em atividades de ensino, pesquisa, extensão; necessidade de produção científica; necessidade de realizar orientações acadêmicas; de participar de vários conselhos e comissões em que lhe são cobrados emissão de pareceres, de produção de propostas curriculares, etc.

Tal problemática, é evidenciada no relato do professor Fábio, que assim considera algumas dificuldades com a docência na universidade.

Eu não sou de falar muito, mas eu me preocupo com a condição de trabalho na universidade, sobretudo porque enfrentamos dilemas e problemas parecidos com a escola básica. São diferentes em parte, mas tem a ver com a profissão, pois é preciso a gente trabalhar questões inerentes aos interesses e particularidades dos estudantes de licenciatura. E eu estou aprendendo aqui com vocês, me abrindo para revelar como tenho construído minha prática docente e percebendo como as experiências vão acontecendo quando eu paro e olho pra profissão que exerço e me coloco sempre disposto a superar os problemas. (Fábio, relato oral, 2020)

O fato é que há distintas caracterizações das ações cotidianas da profissão docente em ambos os níveis. No entanto, são nas condições que cada um tem que a aprendizagem experiencial vai ganhando um contorno outro, gerando novas políticas de conhecimento e de atuação profissional que brotam das acontecências da profissão docente.

Conforme Rios (2015), entende-se que na Educação Básica, sobretudo olhando para as questões inerentes à contemporaneidade, em relação ao processo de profissionalização docente, existe um movimento de reconfiguração das formas de viver a profissão. Na busca pela profissionalização, os docentes foram historicamente reconfigurando a profissão, visando, sobretudo, atingir outro status na carreira, a busca pela autonomia e a formalização dos saberes pedagógicos.

Na docência universitária, conforme sinalizam Cunha, Soares e Ribeiro (2009) a reconfiguração das formas de viver a profissão são tecidas não mais em políticas e diretrizes curriculares, mas no fazer cotidiano da docência universitária, que tem provocado nos professores a necessidade de construir diuturnamente, saberes e práticas que sejam significativas para o próprio professor, como também para o estudante que ele forma. Em se tratando de estudantes de licenciatura, os professores universitários, na contemporaneidade, são convocados a repensarem suas práticas a fim de que elas estejam alinhadas com as demandas da formação de professores com vistas a atuarem na Educação Básica, pelas demandas que esta apresenta. Nesse pensamento, o cotidiano da Educação Básica, invade as salas dos professores universitários, formadores de professores, promovendo neles a necessidade de se reinventarem e construírem novos saberes e práticas, que só experiencialmente se evidenciam nos percursos narrativos e profissionalização dos professores.


Considerações finais


O trabalho com a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas possibilitou conhecer os modos próprios como os professores tecem a docência universitária. Nesse sentido, o estudo viabilizou compreender que a profissão docente é produzida numa rede dialógica em que docentes universitários, formadores de professores, desenvolvem práticas e saberes em franca articulação com as demandas que professores da escola básica enfrentam. Assim, temáticas como cotidiano escolar, aprendizagem experiencial da docência, saberes e práticas do professor universitário emergiram como elementos centrais, demarcados por narrativas do vivido e experienciado ao longo das trajetórias de vida e de formação.

As narrativas se insurgiram como elementos potencializadores do fazer docente, criando um cenário reflexivo em que os professores construíram e compartilharam, de modo bastante horizontalizado, experiências do ser professor universitário. O abrir-se para o diálogo, o tecer junto, o bordar a docência, o arquitetar a profissão mediante preocupações com a relação universidade e escola básica deram o tom às narrativas que documentam e legitimam o saber que advém da experiência de ser professor universitário.

Visibilizou-se, ainda, como a docência universitária é singular, pois é atravessada por dimensões que envolvem processos de gestão do conhecimento, em que o docente universitário é convocado, diuturnamente, a produzir saberes e disseminá-lo por meio de projetos de pesquisa, ensino e de extensão. Nessa direção, escrever, ler, reescrever, comentar, reescrever, ler novamente, voltar a comentar e a reescrever foram ações que fizeram pulsar os saberes que docentes constroem no exercício da profissão. Ao contrário do que se pensa a respeito do professor universitário, este profissional aprende o ofício no contexto da própria docência, nas relações que estabelece com o conhecimento e com o modo como o operacionaliza.

Por essa lógica, o saber da experiência torna-se fundante, não como um saber que é acumulado por anos de vivência na profissão, mas pelo saber que se constrói nas acontecências da profissão docente, posta sempre em questão por quem a realiza. Trata-se, portanto de um saber da experiência que se produz nos acontecimentos que atravessam os professores, que os tocam e que os movem a pensar sobre seu papel na universidade, sobretudo pela necessidade de articular o seu trabalho aos objetivos de formar outros professores. Nessa dinâmica, documentar significou produzir conhecimento que se origina do cotidiano da profissão, mas que também é produzido pela própria história de vida e de formação dos professores. Documentar, significou revisitar as formas de tecer a profissão, colocando-a sempre em questão.

Colocar a profissão docente em questão implicou em tecer as experiências pedagógicas na interface, produzindo e compartilhando com os pares, saberes e modos próprios de vivenciar os desafios de ser professor universitário que atua em cursos de licenciatura, logo com preocupações e perspectivas de formar futuros professores que atuarão na Educação Básica. Significou ainda, abrir-se a disposição de aprender com o outro, de validar o conhecimento do colega professor, pois é conhecimento tecido pelo par, em um coletivo que milita e atua em situações comuns a ambos.

O princípio de horizontalidade se evidenciou como um desafio, por meio do qual os professores se colocaram em condições de ouvir, ler e comentar a experiência do colega, e de igual modo aprender com ela, validando-a, construindo, nisso, como nos ensina Suárez (2007), uma nova política de conhecimento, que, também, na docência universitária emerja do cotidiano e dos desafios que a profissão apresenta. É desse contexto, que docentes, como Fábio, em seus relatos orais e documentos afirmou que “estou aprendendo aqui com vocês, me abrindo para revelar como tenho construído minha prática docente e percebendo como as experiências vão acontecendo quando eu paro e olho pra profissão que exerço e me coloco sempre disposto a superar os problemas.” (Fábio, relato oral, 2020).


Referências


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[1] Trata-se de um observatório construído pelo grupo de pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade na Educação Básica – Diverso, grupo que desenvolve a pesquisa intitulada “Profissão docente na Educação Básica da Bahia. Neste observatório, o grupo tem produzido ebooks como resultado da Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas de professores da Educação Básica baiana, que atuam no Ensino Fundamental e Médio. Link para acesso: http://www.observatoriodocente.uneb.br/index.php/coletaneas-virtuais/