Saberes y prácticas. Revista de Filosofía y Educación / ISSN 2525-2089
Vol. 7 N° 2 (2022) / Sección Dossier / pp. 1-10 / Licencia Creative Commons
Centro de Investigaciones Interdisciplinarias de Filosofía en la Escuela (CIIFE),
Facultad de Filosofía y Letras, Universidad Nacional de Cuyo, Argentina.
revistasaberesypracticas@ffyl.uncu.edu.ar / saberesypracticas.uncu.edu.ar
Recibido: 16/12/2022 Aceptado: 30/12/2022
DOI: https://doi.org/10.48162/rev.36.069


Escrever, experienciar e narrar:
experiências ambientas na constituição docente

Escribir, experimentar y narrar: experiencias ambientales en la constitución docente

Writing, experiencing and narrating: ambient experiences in the constitution of teacher

ORCID Rafaela Engers Günzel

Universidade Federal do Rio Grande, Brasil

rafaela.gunzel@gmail.com

ORCID Aline Machado Dorneles

Universidade Federal do Rio Grande, Brasil

alinedorneles@furg.br


Resumo. Assume-se a investigação narrativa (auto)biográfica como modo de documentar as experiências ambientais da formação docente. Desse modo, apresentam-se as narrativas das experiências envolvendo a Educação Ambiental na formação inicial de uma professora-pesquisadora, as quais mostram, que a temática da sua pesquisa de mestrado está relacionada com as experiências ambientais vividas no contexto escolar e acadêmico reforçando a perspectiva da investigação a partir das memórias da infância e o reencontro com narrativas construídas na formação inicial. Apresentam-se compreensões relacionadas a formação docente ambiental e as potencialidades do processo narrativo (auto)biográfico centrado nas narrativas revividas e recontadas ao resgatar o diário de formação da professora-pesquisadora. Argumenta-se que o ato de documentar a experiência de formação mostra às potencialidades da pesquisa narrativa e reafirma a importância da escrita (auto)biográfica no processo de investigação.

Palavras-Chave. Educação Ambiental; Diário; Formação de Professores.


Resumen. Se asume la investigación narrativa (auto)biográfica como forma de documentar las experiencias ambientales de la formación del profesorado. Así, se presentan las narrativas de experiencias que involucran la Educación Ambiental en la formación inicial de un profesor-investigador, que muestran que el tema de su investigación de maestría está relacionado con las experiencias ambientales vividas en el contexto escolar y académico reforzando la perspectiva de la investigación a partir de los recuerdos de la infancia y el reencuentro con las narrativas construidas en la formación inicial. Presenta comprensiones relacionadas con la formación ambiental del profesorado y el potencial del proceso narrativo (auto)biográfico centrado en las narraciones revividas y recontadas al recuperar el diario de formación del profesor-investigador. Se argumenta que el acto de documentar la experiencia de formación muestra el potencial de la investigación narrativa y reafirma la importancia de la escritura (auto)biográfica en el proceso de investigación.

Palabras clave. Educación Ambiental; Diario; Formación de profesores.


Abstract. It is assumed the narrative research (auto)biographical as a way to document the environmental experiences of teacher training. Thus, we present the narratives of experiences involving Environmental Education in the initial training of a teacher-researcher, which show that the theme of her master's research is related to environmental experiences lived in the school and academic context reinforcing the research perspective from the childhood memories and the reunion with narratives built in the initial training. It presents understandings related to environmental teacher training and the potential of the (auto)biographical narrative process centered on the narratives relived and retold when retrieving the teacher-researcher's training diary. It is argued that the act of documenting the training experience shows the potential of narrative research and reaffirms the importance of (auto)biographical writing in the research process.

Keywords. Environmental Education, Daily, Teacher Training.


Reflexões Iniciais

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.
Clarice Lispector (1998)


A intencionalidade da construção do presente texto é de documentar os processos de escrita de si, do encontro com as palavras que são iscas para que o escrever possa acontecer, com abertura ao inesperado - nas entrelinhas da nossa subjetividade. Lispector (1998) nos convida encontrar na escrita as entrelinhas do viver, em morder a isca e encontrar nas palavras o que não é palavra.

A narrativa de si trazida nas entrelinhas das palavras já documentadas em diário de formação são iscas para interpretar, refletir e compreender a constituição da docência ambiental. As experiências ambientais emergentes do encontro com o diário de formação são interpretadas pela perspectiva teórica e metodológica da investigação narrativa (auto)biográfica (Clandinin e Connelly, 2015). Este texto emerge de uma pesquisa de mestrado em Educação em Ciências, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com foco na investigação narrativa, educação ambiental e o ensino de Ciências (Günzel, 2020). 

Suárez, Arganani e Dávila (2017) mencionam a importância de narrar a experiência educativa desde a perspectiva de quem a vive e faz, colocando em foco assim, as experiências vividas pelo próprio docente, sendo um incentivo de ser autor no processo de investigar narrativamente a sua própria formação docente. Dessa forma, desafio-me a reviver e recontar as experiências ambientais que tive, a partir de lembranças e de registros documentados em um diário de formação, chamado de Diário de Bordo – construído durante a formação acadêmica em Química Licenciatura, dentro do grupo PETCiências[1] da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Cerro Largo, constituído por alunos das licenciaturas em Química, Física e Ciências Biológicas. Esse Diário de Bordo foi construído com as experiências vividas durante minha trajetória acadêmica, sendo utilizado para registro das atividades desenvolvidas pelos bolsistas integrantes do grupo.

Trago, a partir do exposto, uma inquietação inicial, e motivadora de todas as outras: por que a narrativa? Não desejo encontrar uma única resposta. Ao relacionar as crônicas de Lispector (2010) sobre o escrever, quando diz que “não se faz uma frase. A frase nasce” (p.179), talvez o escrever narrativamente seja isso, não é possível fazer uma narrativa, a narrativa nasce do encontro com a experiência.  Que segundo Larrosa (2007) a experiência é o que me acontece e por isso preciso “[...] explorar o que a palavra experiência permite pensar, o que a palavra experiência permite dizer, e o que a palavra experiência permite fazer no campo pedagógico” (p. 38), e, assim, explorar possibilidades de um pensamento da educação, elaborado a partir e com a experiência.

Com o desejo de compreender minhas experiências ambientais como professora-pesquisadora nas reflexões do escrever em Lispector (1998; 2004) e na perspectiva de uma investigação narrativa (auto)biográfica, o presente artigo é organizado em dois momentos.  No primeiro apresento o referencial teórico metodológico da investigação narrativa de Clandinin e Connelly (2015), com a intenção de resgatar no Diário de Bordo as memórias que permitem o encontro do “eu” pesquisadora com a temática investigada. Em um segundo momento, apresento as interpretações, sentidos e significados construídos ao reviver e analisar meu próprio Diário de Bordo construído enquanto bolsista do PETCiências na graduação, rememorando o já documentado, as experiências ambientais relacionadas a formação docente. Finalizo o texto destacando as compreensões sobre Educação Ambiental que foram possibilitadas e tecidas com esse ser-e-estar na pós-graduação.


Investigação Narrativa como caminho de Viver e Reviver as Experiências Docentes

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador [...] uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar por um momento melhor porque este simplesmente não vinha [...]
Clarice Lispector (2004)


Ao resgatar minhas próprias narrativas busco alimentar um desejo de reviver, de reencontrar na escrita os sentimentos de entender, reproduzir e compreender os motivos que me levam a chegar até aqui. Lispector (2004) nos diz que para escrever é preciso começar, que não há um momento certo, é um convite para documentar o até então não documentado. Ao escrever narrativamente sou livre para expor minhas ideias, dificuldades e conflitos. A narrativa é um espaço de liberdade para contar, recontar, rever e reviver os sentimentos que até então permaneciam vago e sufocador.

Para Clandinin e Connelly (2015) é importante reconhecer a centralidade das experiências do investigador, e para isso, um dos pontos de partida é a narrativa das nossas próprias experiências em um movimento (auto)biográfico. O caminho teórico-metodológico da investigação narrativa (auto)biográfica possibilita reflexões desse fazer e viver a pesquisa, o que “[...] pode auxiliar na compreensão do singular/universal das histórias, memórias institucionais e formadoras dos sujeitos em seus contextos, pois revelam práticas individuais que estão inscritas na densidade da História” (Souza, 2011, p. 41).

Abrahão (2016) apresenta as narrativas de formação como metodologia de investigação e prática formativa, em que dentre as dimensões indispensáveis ao processo formativo, está a intencionalidade na reflexão (auto)biográfica e como consequência a construção identitária e a experiência do sujeito da formação. A indissociabilidade do eu pessoal do eu profissional, segundo a autora, é a dimensão que se ocupa da construção da identidade.

Com isso, entendo a importância de investigar a minha própria constituição como professora-pesquisadora. Sinto-me convidada a reviver minhas experiências de vida e formação, relacionando-as com minha pretensão de pesquisa. Afinal, por que escolhi está temática de investigação e não outra? Quais são os perpassares que tenho a contar? Lembro-me da construção do meu trabalho de conclusão de curso, ainda com histórias tímidas da minha constituição profissional docente, porém compreendo que o contar-se é um começo nos processos de investigação narrativa. Assim, no decorrer do texto minhas histórias são trazidas para que eu possa encontrar em minhas experiências o significado e sentidos da pesquisa.   

Desse modo, resgato o Diário de Bordo construído na minha formação inicial docente, na experiência de ser bolsista do projeto PETCiências. Cada aluno integrante do projeto PETCiências recebe um caderno ao ingressar no programa para que faça escritas sobre suas vivências O nome Diário de Bordo é uma referência ao diário escrito sobre as viagens de navio, com registros do vivido por todo um grupo, com a intenção de ser lido por outros (HESS, 2006). O autor elenca que o Diário de Bordo é referência ao diário escrito em viagens de navios, no qual se registravam o vivido de um grupo, sendo um diário destinado a ser lido por outros. O diário de certa forma é uma pesquisa individual e ao mesmo tempo coletiva.

O Diário de Bordo do PETCiências foi construído individualmente partindo de experiências vividas com o outro, ele tem a intencionalidade de ser lido por alguém, que inicialmente é o tutor. Esse diário de certa forma é uma pesquisa individual e ao mesmo tempo coletiva. Os autores Pórlan e Martín (1997) trabalham na perspectiva de diário do professor como um instrumento que permite autonomia do processo de ensino e aprendizagem, e, a reflexão sobre a própria prática, que se caracteriza como um dos princípios do Diário de Bordo do PETCiências.

Encontro-me, a partir de seus escritos, com Marques, “[...] numa interlocução de muitas vozes que me agitam, conduzem, animam, perturbam. É isso que faz de meu escrever uma interlocução de muitas vozes, uma amplificação de perspectivas, abertura de novos horizontes, construção de saberes novos” (2008, p. 28). Ao escrever narrativamente percebo esse diálogo com outras vozes, revivo lembranças e reconstruo saberes. Quando retorno aos meus escritos, deparo-me com minhas próprias vozes, repenso e me transformo a cada experiência. Não sou mais a mesma nesse ir e vir da pesquisa, apesar disso, o escrito no papel fica documentado, a história ainda será a mesma, não terá alterado uma única palavra, ao menos que seja reescrita.

A escrita realizada nesse Diário de Bordo tem a função de registrar as experiências vividas. Por isso, proponho a investigação narrativa (auto)biográfica como modo de documentar e compreender, pela escrita, as experiências. A escolha por essa investigação como caminho teórico-metodológico da pesquisa possibilita reflexões sobre o fazer e viver a formação. Na perspectiva narrativa a atitude é de sempre fazer o melhor, considerando outras possibilidades, circunstâncias, interpretações e modos de explicar as coisas (Clandinin e Connelly, 2011). Com possibilidade de interpretação do vivido, e, tendo em vista, o significado da escrita do Diário de Bordo, me direciono pela investigação narrativa (auto)biográfica para trazer na próxima seção algumas narrativas escritas em minha formação inicial.

Revivendo Experiências Ambientais de Formação: Registros Narrativos


Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que fico consciente das coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia. Clarice Lispector (2010)


Encontro-me com meu diário de formação, com narrativas documentas em momentos outros, ao ler, escrever e reescrever consigo viver a experiência do encontro, do encontro com inesperado, com o ainda não percebido. Por isso, encontro-me no escrever, e assim alimento meu desejo de estar presente comigo e com o outro. Ao escrever posso viver inesperadas surpresas, nem sempre felizes, mas necessárias, pois é sobre o escrever nas palavras de Clarice Lispector que me encontro com o que antes eu não sabia.

No processo inicial de escrita em diários, as narrativas eram descritivas, escrevia de modo linear cada acontecimento da vivência, iniciava a experiência da escrita, afinal “[...] tanto os professores como os alunos são contadores de histórias e também personagens não só das histórias dos demais, mas das suas próprias histórias” (Aragão, 2002, p. 1). Esse caminho de escrita, leitura e releitura do vivido favoreceu documentar a experiência de formação, e então reviver e construir reflexões sobre minhas próprias práticas. O entendimento do conceito de experiência trazido neste texto é apresentado a partir de Larrosa, ao dizer que:

a experiência é o que nos acontece, não o que acontece, mas sim o que nos acontece. Mesmo que tenha a ver com a ação, mesmo que às vezes aconteça na ação, não se faz a experiência, mas sim se sofre, não é intencional, não está do lado da ação e sim do lado da paixão. Por isso a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, exposição. (2007, p. 68)

Com a noção de experiência voltada para a disposição de abertura e de atenção ao que me acontece, apresento as narrativas que construí e minhas experiências formativas com ênfase na docência ambiental. Tais narrativas registradas no Diário de Bordo, fazem parte de um conjunto de histórias narradas reflexivamente com aporte da proposta que segue a ideia do professor investigativo de sua própria prática, considerado a partir do proposto por Pórlan e Martín (1997), utilizando o diário do professor como instrumento de sistematização. Segundo esses teóricos, o diário se caracteriza como um modo de refletir na/sobre a própria prática, sobre os aspectos significantes da dinâmica de sala de aula – por exemplo – buscando aprimorá-la quando necessário. É possível, por meio deste processo, a qualificação e constituição do professor.

A escrita de um Diário de Bordo faz parte das atividades realizadas pelos bolsistas do PETCiências, que além do caráter interdisciplinar (integrando três cursos da área de Ciências da Natureza), aposta na educação tutorial e na indissociabilidade do trabalho com os eixos ensino, pesquisa e extensão para qualificar a formação dos alunos. Por conta do modelo formativo apostado nesse grupo, alimentei com histórias um Diário de Bordo durante a graduação, que agora vem compor parte do texto em que revivo experiências já documentadas. No presente momento,

as narrativas introdutórias, advindas do viver, contar, recontar e reviver de nossas experiências pessoais nos ajudam a nos reconhecer no campo e nos ajudam a compreender textos de pesquisa que escrevemos acerca de nossa experiência num dado contexto. (Clandinin e Connelly, 2015, p. 107)

É um reconhecer-se nos caminhos da investigação a partir das minhas próprias histórias. E, para compreender-me no contexto de pesquisa foi necessário um reencontro com os escritos narrativos documentados no Diário de Bordo. Um aventurar-se com o esforço de que meus desejos, anseios e reflexões possam se tornar mais claros ao transpor em palavras escritas. Lispector (2010) diz que “escrever é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento; de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever” (p.182).

 Assim, apresento minhas escritas, reflexões e narrativas minúsculas como caminho para construir sentidos e interpretações sobre ser professora e pesquisadora na Educação Ambiental e no Ensino de Ciências. Com esse viés, resgato um pequeno trecho da primeira escrita realizada no Diário de Bordo, em que narro minhas expectativas a serem vividas: “O PETCiências compreende ao ensino, pesquisa e extensão, e têm como tema o meio ambiente. Espero enriquecer minha formação docente com essas experiências, e dar minha contribuição para o projeto, através do verbo compartilhar”[2] (Günzel, diário de bordo, agosto de 2014). Foram 4 anos como bolsista do programa, praticamente toda a graduação – do 2º ao 9º (e último) semestre, e, retornando a esta primeira escrita, minhas expectativas foram contempladas e extrapoladas: vivi experiências inimagináveis, vivi o encontro com inesperadas surpresas.

No período como Petiana, participei de atividades envolvendo os três eixos da Universidade (ensino, pesquisa e extensão), as quais me desafiavam compreender sua indissociabilidade e importância na formação inicial de professores. Realizei a iniciação à docência contando com a parceria de uma professora da escola básica, em turmas de Ciências. Em conjunto, realizei muitas ações e projetos, aulas práticas e experimentais, oficinas e palestras. Dentre as temáticas abordadas, grande parte era voltada ao diálogo de questões ambientais:

As turmas dos anos finais do EF e do EM confeccionaram charges após cada palestra. A oficina das pastilhas repelentes não foi realizada em função do tempo (relógio e clima). Os alunos interagiram quando questionados trazendo assuntos atuais da realidade da cidade, como o esgoto largado no arroio Clarimundo e a separação do lixo que grande parte das pessoas não fazem. No sentido do lixo uma aluna me questionou quando a palestra terminou sobre o uso de um material para outros fins, como a garrafa PET ser usadas para fazer algum brinquedo, se isso não iria apenas adiar o problema pois aquele brinquedo irá para o lixo depois de um tempo. E de fato ele vai ir, mas ainda assim acredito que se prolongou o tempo de uso do material que estaria indo diretamente para o lixo, claro que, isso não vai resolver o problema maior do descarte de resíduos. (Günzel, diário de bordo, 14 de junho de 2017)

O planejamento das atividades realizadas na escola sempre tinha uma intenção. No caso das Charges descritas na narrativa, o objetivo era possibilitar aos estudantes o desenvolvimento do pensamento crítico acerca das questões ambientais. Um aspecto interessante no uso desse gênero textual como objeto de ensino “é o fato de condensar informações em processos intertextuais que obrigam o interlocutor a conhecer acontecimentos atualizados para que consiga realizar as inferências adequadas e construir sentidos, condensando dois ou mais contextos” (Cavalcanti, 2012, p. 5).

 Esse trecho do Diário de Bordo é referente a uma conversa em forma de palestra realizada com os alunos, discutindo questões que emergiam e eram pertinentes a ação, considerando que “a escola precisa marcar o desejo pelo saber na relação entre os sujeitos aprendentes/ensinantes na constituição de pertencimento do conhecimento, através do diálogo reflexivo e argumentativo no coletivo” (Uhmann, 2013, p. 28). Parto do entendimento de que a Educação Ambiental deve ser permanente na vida dos alunos e que ela se constitui em nossas vidas principalmente por meio de reflexões e práticas coletivas sobre o tema.

Quando releio as escritas que fiz no Diário de Bordo, o pensamento é movimentado pelas muitas questões de ser docente e, também sobre papel que tenho como integrante da sociedade. Compartilho o trecho a seguir, o qual reforça o impacto de nossas ações:

É interessante ver na prática que as crianças observam as ações dos adultos, isso nos faz perceber que não podemos ficar alienados em práticas da “zona de conforto” e simplesmente dizer ao outro que ele deve praticar ações que ajudem o meio ambiente. É necessário que realizemos aquilo que ensinamos ou desejamos ensinar, só assim poderemos ser grandes professores: ao colocar-se como sujeito-ação daquilo que falamos. (Günzel, diário de bordo, 09 de junho de 2017)

Nessa escrita do Diário de Bordo, percebo o movimento de ir além da descrição. Esse é um dos pontos discutidos por Porlán e Martín (1997) quando descrevem a ideia do diário do professor, colocando o papel da reflexão da própria prática como instrumento de aperfeiçoamento pedagógico. Ao retornar para as narrativas do Diário de Bordo, percebo a evolução da escrita, que passa da simples descrição para narrativas que expressam opiniões e reflexões. Essa releitura do diário permitiu enxergar como minha iniciação à docência foi marcada pelas questões ambientais. O processo formativo ocorrido entre bolsista, professora da universidade e professora supervisora da escola, também possibilitou o exercício da escrita de relatos que possibilitaram a participação de eventos da área, e, inclusive, o desenvolvimento de um artigo posteriormente publicado em revista, abordando a relação entre a escola e universidade no contexto do PETCiências para a formação da identidade docente (cf. Uhmann, Günzel e Both, 2018).

Em uma passagem, que encontro no diário, falo sobre a escrita de artigos:

[...]. Penso, escrever sobre a própria prática é mais do que refletir sobre ela, é compartilhar uma experiência pessoal. Quando leio um relato de alguém é como ouvir um segredo, é uma experiência tão íntima vivida pela pessoa que escreve e compartilha para que outras possam conhecer e usar aquela experiência como fonte para as suas práticas e reflexões. Por isso, é importante que a gente escreva relatos de experiências que realmente nos marcaram, que tenham significado, um bom relato é escrito quando o sujeito quer escrever/refletir/compartilhar a experiência vivida. (Günzel, diário de bordo, 20 de março de 2017)

Dessa forma, Marques (2008) afirma que a escrita possui historicidade, não simplesmente uma história, pois ela tem a capacidade de produzir-se e produzir seu próprio campo simbólico, social e cultural, “portanto, a busca de investigação permanente do professor, numa perspectiva de construção coletiva, parece ser uma proposta bastante enriquecedora, à medida que permite discutir e analisar a própria prática” (Carniatto, 2002, p. 146).

Além de exercer a docência com inserções na escola, dentre as atividades desenvolvidas no PETCiências, destaco o trabalho de pesquisa realizada com uma professora colaboradora do projeto. A investigação compreendia sobre a Educação Ambiental em livros didáticos de Química, bem como as relações ambientais com a saúde e alimentação. Outra atividade era o ensino – que completa os eixos formativos objetivados pelo PET (ensino, pesquisa e extensão) – nessa atividade os alunos bolsistas ministravam e participavam de cursos de formação, oficinas e palestras, sempre em relação à formação de professores e/ou questões ambientais. Em um desses momentos, discutiu-se que: “[...] é importante que a gente reconheça que nem tudo que é feito com materiais alternativos, que está muito em alta, é o melhor ou mais adequado/coerente com o que se pretende fazer” (Günzel, diário de bordo, 23 de maio de 2017). Esse recorte é referente ao registro de uma oficina sobre práticas de Educação Ambiental, que levou a discussão acerca da coerência dos materiais escolhidos com o objetivo da atividade prática a ser desenvolvida.

O grupo PETCiências realizava dessa forma o contato com os três eixos formativos, contando com reuniões gerais com a presença do tutor, constituindo o eixo da educação tutorial. Esses momentos especiais reuniam todo o coletivo, e, junto dos colegas, ficava estudando, conversando e descontraindo. O compromisso com a formação era visível na atuação do tutor, por isso, essas reuniões eram espaços de muitas tarefas e planejamentos. Quando retorno ao Diário de Bordo, que escrevi durante essa vivência petiana, encontro uma narrativa na perspectiva da experiência vivida, que me desacomoda e me faz viver a experiência de escrever narrativamente, uma escrita sensível e atenta ao que me aconteceu naquele momento. Realizo na ocasião, uma visita em uma escola estadual de Cerro Largo, para assim, escrever a lembrança escolar que me viria.

Ao adentrar a escola naquele dia frio e chuvoso vieram a tona lembranças da escola que estudei. Visualizei corredores cheios de murais, flores, desenhos, mensagens e decorações coloridas. Em nada se parecia com as paredes daquela escola: cinzas vazias e com corredores vazios. Talvez seja a percepção noturna, mas não havia odor de flores, mesmo com a recepção agradável e cheia de vida. Senti falta da horta, do grande pátio com brinquedos, do pomar, dos eucaliptos com as caturritas gritando “bruá-bruá” em todos os períodos e da grama que tanta e tantas vezes foram o tapete de descanso após o almoço, após as aulas esportivas, das rodas de conversa e do tererê esperando a aula do contra-turno. Não tinha barro vermelho e grudento naquela escola, só concreto e água da chuva que não deixa o chão lambuzado e escorregadio. Nunca tinha eu, observado como era diferente uma escola na cidade e outra no interior. Uma é cercada com muros altos e grandes portões e na outra os animais dos vizinhos circulam livres. Uma é tão cinza (até a tinta da parede) e a outra é tão alegre (a tinta das paredes é colorida, quente), cheia de enfeites e trabalhos artesanais, com um imenso gramado, horta e pomar. Que gosto doce teve a infância/adolescência! Sem monotonia e com muita liberdade... sentindo o cheiro de bergamota verde, de grama cortada, de terra molhada, dos canteiros de flores e ouvindo o chiar das caturritas: “bruá-bruá” (Günzel, diário de bordo, 06 de junho de 2017).

Há duas escolas nesta narrativa: uma da qual já possuía história; e outra em que fui realizar uma visita na ocasião. Por isso, essa última, tinha as paredes cinza - faltava história relacionada a esse espaço. Este relato traz uma evidente relação de pertencimento, ditada pelas experiências que vou vivendo nesses lugares e que me modificam. Compreendo o pertencimento, por Cousin (2010), como uma crença ou ideia que une as pessoas, e torna possível o entendimento dos processos das relações sociais presentes em cada vivência de um lugar, que se traduzem em experiências pessoais e coletivas. Posteriormente, realizo os estágios de docência em Ciências e Química na escola de paredes cinza, e toda vez que subia os degraus da entrada, ela parecia tão cheia de vida quando a escola da infância/adolescência.

A escola da infância/adolescência em que cursei toda a Educação Básica, tem uma frase considerada o lema da escola: “Juntos rumo a uma vida mais saudável com consciência e responsabilidade”. Até os dias atuais essa frase se faz presente na escola, quando lá retorno me deparo com esse dizer. É uma escola do campo, do qual fez parte da minha história de formação, e hoje, ao remeter a essa lembrança escolar, percebo um almejar para as questões socioambientais, e digo socioambientais, pois a escola deseja uma formação integral do cidadão e proximidade com a comunidade. Nesse sentido, Tozoni-Reis (2008) contribui afirmando que os problemas ambientais possuem raízes histórico-políticas e que é preciso transformar as relações sociais. Assim, tenho uma formação escolar marcada sempre pela Educação Ambiental.

Na graduação, acabou que a temática ambiental também se fez permanente presença. Sobre o movimento de pesquisa na graduação, oportunizado pelo PETCiências, compartilho mais uma escrita do Diário de Bordo:

O processo das nossas escritas é algo longo e um caminho cheio de dúvidas para seguir, e é a partir das nossas perguntas que buscamos as respostas e as novas perguntas (porque as perguntas não cessam!!). Escrever é um ciclo que não se fecha, novas respostas geram novas perguntas. Isso é ser pesquisador, é ser aluno e é ser professor... sempre com novas perguntas a partir de cada resposta, é sempre (re)pensar, (re)escrever, (re)construir, (re)compreender e (re)perguntar. Tudo isso é o que nos constitui e nos agrega como formadores, pois, escrever é refletir sobre a nossa prática e as leituras são um olhar para nós mesmos. Não sei quem disse que escrever é uma das melhores coisas da vida... mas esse alguém tem plena razão sobre a escrita na nossa vida e formação pessoal/profissional. Espero sempre poder melhorar o meu “eu” através da escrita reflexiva, e assim construir práticas pedagógicas com fundamentação, compreensão e amor pela docência. (Günzel, diário de bordo, 19 de setembro de 2016)

Já naquele momento de reflexão, via o caminho para tornar-me uma formadora, se não de professores, de cidadãos que vão atuar em esferas sociais de diferentes maneiras. A escrita tem importância crucial para o desenvolvimento formativo, e o que seria de nós professores sem escrever, refletir? O ato de escrever vem oportunizando-me trilhar vários caminhos. A necessidade de escrever conduz a pensar/refletir e marca o arcabouço de pesquisar. Assim como a escrita, a Educação Ambiental também precisa ser desenvolvida e trabalhada, de forma contínua e persistente. Trago mais uma reflexão do Diário de Bordo para movimentar os pensamentos:

Muito bem dizem que a EA é uma forma de comunicação, educar pelo exemplo. É necessário que nós tenhamos a compreensão de que somos sujeito-ação dentro dessa temática, pois somos espelhos dos quais as crianças/alunos refletem. (vêem e fazem). Não podemos prever quem serão essas crianças futuramente, mas precisamos tentar envolve-las na preocupação ambiental dentro da escola para que essas pequenas ações possam torná-las sujeitos críticos que se envolvem e se preocupam com o meio ambiente e que realizem ações na sua casa/comunidade/empresa. Para que a proposta de EA se efetive é primordial que sua prática seja contínua e cooperada. (Günzel, diário de bordo, 25 de abril de 2017)

Revendo as memórias no Diário de Bordo, percebo a marcada presença de opiniões sobre a Educação Ambiental que fui construindo. No contexto apresentado sobre a escola do campo, sobre a graduação, penso sobre a formação inicial e continuada dos meus professores e dos meus colegas professores... como/onde/de que maneira, a Educação Ambiental se fez/faz presente nas vidas desses sujeitos. É convidativo investigar essa temática, que naturalmente surge e urge por ser investigada, e o Diário de Bordo se configura como sendo textos de campo que “[...] ajudam a completar a riqueza, a nuance, e a complexidade da paisagem, retornando ao pesquisador reflexivo a uma paisagem mais rica, mais complexa e mais problematizante do que a memória provavelmente pode construir” (Clandinin e Connelly, 2015, p. 123). Com o ato de viver e (re)viver minhas próprias histórias, sigo apostando nas narrativas como modo de registrar e contar experiências.


Considerações Finais

Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O que me impede? Às vezes é o horror de tocar numa palavra que desencadearia milhares de outras, talvez não desejadas. Clarise Lispector (2010)


Busquei neste texto, por meio da investigação narrativa e das reflexões tecidas sobre o escrever em Lispector (2004; 2010) reviver e contar experiências ambientais a partir de lembranças e registros escritos no Diário de Bordo sobre ser bolsista PETCiências, a temática da Educação Ambiental e as relações com a docência em Química. Um texto que almejou destacar a escrita narrativa, o escrever como modo de encontro com a temática de investigação. Fica o sentimento que ainda há tantas coisas sobre o que escrever, pois as palavras documentadas e trazidas são possibilidades infinitas de reflexões.

Não poderia deixar de relacionar Paulo Freire (2018) de que a experiência discente se faz fundamental para a futura prática docente, logo meus escritos foram fundamentais para construção da criticidade e da liberdade de ser autora do meu fazer e refazer docente. Retornar às narrativas das experiências de formação vividas desde o começo da graduação, aponta para a importância da escrita no processo de formação de professores, como também, a constituição do docente que percebe a escrita como forma de narrar e de narrar-se. Outro aspecto emergido foi o de perceber a Educação Ambiental intrínseca ao constituir-se reflexivamente na docência e como pesquisadora.

Escrever sobre meu caminhar neste texto, num processo narrativo (auto)biográfico, possibilitou entender a construção da minha identidade de professora-pesquisadora e por meio das experiências que tive, contar o encontro com a temática da educação ambiental, a partir das narrativas introdutórias que contextualizaram os caminhos investigativos que me fazem chegar até aqui. Nesse entender-me, enalteço para a importância da escrita no diário durante a formação docente e para a inclusão da Educação Ambiental na formação inicial dos professores, como meio para constituir profissionais atentos para questões que tangem a sensibilidade e a alteridade.

Várias aprendizagens puderam ser tecidas a partir desse ser-e-estar na Pós-Graduação, uma delas é a compreensão de que Educação Ambiental é, antes de tudo, Educação. Entendo que a Educação Ambiental pode ter muitas faces, correntes filosóficas, inúmeros defensores e opositores, ainda assim, ela é educação. E sendo educação, decorre a compreensão da responsabilidade que temos, nós professores, nós sociedade, nós liderança política, de educar.


Referências

Abrahão, M. H. M. B. (2016). Intencionalidade, reflexividade, experiência e identidade em pesquisa (auto) biográfica: dimensões epistemo-empíricas em narrativas de formação. In.: Bragança, I. F. de S.; Abrahão, M. H. M. B.; Ferreira, M. S. (org.). Perspectivas epistêmico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV, p. 29-50.

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[1] O PETCiências é um projeto do Programa de Educação Tutorial (PET), coordenado atualmente pela Secretária de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Cada grupo é regido por projeto próprio, submetido, avaliado e aprovado em instância nacional mediante abertura de edital.

[2] As narrativas que compõe o registro documentado no Diário de Bordo serão apresentadas em fonte itálica e entre aspas, com o intuito de facilitar a identificação das histórias pelo leitor. Cada narrativa será também acompanhada de data, quando disponível.