Refletindo sobre experimentação audiovisual colaborativa
escolar a partir do “comum” em tempos de pandemia
Reflexionando sobre la experimentación audiovisual
colaborativa escolar desde el “común” en tiempos de pandemia
Reflecting on school collaborative audiovisual
experimentation from “commons” in pandemic times
Katharine Rafaela Diniz Nunes
Universidade Estadual de Campinas, Brasil.
katharinediniz07@gmail.com
Recibido: 26/09/2020
Aceptado: 18/12/2020
Resumo.
A partir do pensamento de Deleuze, este artigo mobiliza questões sobre
experimentação artística e tecnológica propiciada por um comum partilhado,
refletindo sobre duas experiências de cineclube que envolvem também produção
audiovisual colaborativa: uma realizada presencialmente, no contexto de
formação de professores de escolas públicas de uma mesma cidade, e outra,
através de encontros não presenciais síncronos, com educadores, pesquisadores e
artistas de várias partes do Brasil. Pensando na potencialidade que movimentos
colaborativos têm de proporcionar encontros, tensões, processos de
subjetivação, devires… pretende-se também problematizar políticas educacionais
- intensificadas atualmente em resposta à pandemia da COVID-19 - que têm
afetado diretamente a produção de cultura e arte mediada por tecnologias em
escolas públicas, podendo ameaçar a construção comunitária e democrática de
suas relações em ambientes digitais.
Palavras-chave.
Audiovisual na educação, Experimentação, Comum.
Resumen.
Basándose en el pensamiento de Deleuze, este artículo moviliza preguntas en
torno a la experimentación artística y tecnológica proporcionada por un común
compartido, reflexionando sobre dos experiencias de cineclub que también
implican producción audiovisual colaborativa: una realizada presencialmente, en
el contexto de la formación de profesores de escuelas públicas de un misma
ciudad, ya la otra, a través de reuniones sincrónicas no presenciales, con
educadores, investigadores y artistas de diversas partes de Brasil. Pensando en
el potencial que movimientos colaborativos tienen para proporcionar encuentros,
tensiones, procesos de subjetivación y devenires… también se pretende
problematizar las políticas educativas – intensificadas actualmente en respuesta
a la pandemia de la COVID-19 - que han afectado directamente la producción de
cultura y arte mediada por tecnologías en escuelas publicas, que puede amenazar
la construcción comunitaria y democrática de sus relaciones en entornos
digitales.
Palabras
clave. Audiovisual en la educación, Experimentación, Común.
Abstract. Drawing on Deleuze’s writings,
this article mobilizes questions about artistic and technological
experimentation provided by a shared common, reflecting on two film club
experiences that also involve collaborative audiovisual production: one
performed in person, in the context of training public school teachers in the
same city, and another, carried out through synchronous non-face-to-face
meetings, with educators, researchers and artists from different places in
Brazil. Thinking about the potential that collaborative movements have to
provide encounters, tensions, processes of subjectification, becoming… it is
also intended to problematize educational policies - currently intensified in
response to the COVID-19 pandemic - that have directly affected
technology-mediated art and culture production in public schools, what can
threaten the community and democratic construction of their relationships in digital
environments.
Keywords.
Audiovisual in education, Experimentación, Commons.
Venho provocar algumas reflexões sobre experimentações
audiovisuais realizadas em escolas públicas brasileiras e como elas podem ser
potencializadas ao reverberar através de tecnologias (considerados aqui não só
como ferramentas, mas, principalmente, como ambientes) de código aberto e
livre. Além disso, gostaria de evidenciar a importância do “comum”: seja ele
relacionado às experiências de exposição de si e de contato com o outro (o
dissenso, a alteridade, a diferença e...) envolvidas no tecer de uma
rede/comunidade de cinema, seja na possibilidade de seus integrantes poderem
conhecer, intervir e gestionar suas tecnologias educacionais de forma
colaborativa, coletiva e adaptada às suas necessidades, ou seja, concebendo-as
como um comum a ser partilhado e cuidado.
Apresentarei alguns diálogos e indagações a partir de
conceitos de Gilles Deleuze ao observar duas experiencias que me atravessam
atualmente: realizar a pesquisa de doutorado (em andamento) “experimentando
cinema num lugar-escola: a partir de fragmentos (de filmes) de Brasil e China
em transformação" no Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO, da
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Brasil) e
participar do coletivo de experimentação audiovisual “Xilofone com Ossos -
Cinema de Grupo e Práticas de Cuidado”, fundado durante a pandemia da COVID-19
(2020) por professores pesquisadores do Laboratório Kumã da Universidade
Federal Fluminense (Brasil) e dedicado às possíveis dimensões pedagógicas e
clínicas que processos de produção de subjetividades coletivas possam provocar.
Através do método da cartografia, a mencionada
pesquisa-intervenção tem acompanhado encontros entre cinema e escola pública,
ao tentar gestar cineclubes escolares que não só assistem e conversam, mas que
também produzem imagens e sons. Tal produção tem sido agenciada por uma maneira
“outra” (através de “dispositivos”[1])
do cinema operar num lugar(-escola), a partir de experimentações estéticas não
roteirizadas (e que não priorizam a reprodução de uma narrativa, mensagem ou
sentido preconcebidos), amplamente abertas ao acaso e às formações do presente:
forças, materialidades, ritmos e fluxos que atravessem esse lugar.
Os participantes dessas experiências de cineclube tem sido
professores da rede pública, para os quais tenho oferecido formações – cada uma
com duração de 3 a 5 meses, em encontros semanais - através do Programa “Cinema
& Educação: A experiência do cinema na escola de educação básica municipal”,
da Secretaria de Educação do Município de Campinas (Brasil). Nelas, assistimos
fragmentos de filmes de um conjunto de obras brasileiras (pernambucanas) e
chinesas (do cineasta Jia ZhangKe) sensíveis às transformações urbanas e
sociais sentidas no cotidiano de pessoas/personagens cujos aspectos locais,
comunitários e/ou públicos de seus modos de vida estão constantemente sendo
ameaçados por interesses de grandes corporações privadas com apoio do Estado.
Das maneiras de filmar/montar presentes nesses fragmentos, elaboramos desafios
de experimentação (dispositivos) - envolvendo gravação/edição de vídeo e
computação gráfica – que propiciam a produção de outros filmes.
Por conta das medidas de quarentena/isolamento social
decorrentes da pandemia da COVID-19, não pude ministrar novas formações[2]
no primeiro semestre de 2020, por elas serem pensadas para ocorrer
presencialmente (necessariamente em espaço escolar). Mas, na mesma época,
comecei a participar do coletivo Xilofone com Ossos que, curiosamente, tem pulsado
justamente através de encontros não presenciais (embora síncronos, por
videoconferências na internet), conectando pessoas de várias partes do Brasil.
O interessante é que o Xilofone... tem uma dinâmica de
cineclube, de criação/gestão em comum e de experimentação a partir de
“dispositivos” (daí também sua forte relação com o acaso) que dialoga bastante
com o que tenho proposto e observado nas escolas através da pesquisa. Assim
como nas formações, nos encontros do coletivo assistimos e comentamos juntos
uma lista de reprodução de imagens e sons produzidos por integrantes do próprio
grupo em resposta a um desafio (dispositivo) proposto ao final do encontro da
semana anterior. A partir daí, vamos acumulando um conjunto de material
audiovisual (bem como de conversas/ideias/repertório) compartilhado em comum,
cuja recombinação de seus elementos na produção de próximas obras - a partir de
novos desafios semanais - é muito bem-vinda.
Com o propósito de articular essas duas experiências em torno
do que lhes é comum, apresentarei alguns dos conceitos filosóficos mobilizados
na pesquisa e mostrarei uma das obras surgidas a partir de um dispositivo
proposto no coletivo Xilofone com Ossos. Ao final, problematizarei como o comum
tem sido tensionado por políticas públicas atuais - intensificadas como
resposta à pandemia da COVID-19 - que atingem diretamente a produção de cultura
e arte mediada por tecnologias nas escolas.
A partir da experiência com o projeto “Inventar com a
diferença: cinema e direitos humanos”, Cezar Migliorin (2014; 2015) diz que um
dispositivo pode ser:
introduzir linhas
ativadoras em um universo escolhido … uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação
dos atores e de suas interconexões. Imaginamos o dispositivo como uma forma de
entrada na experiência com a imagem sem que a narrativa e o texto estivessem no
centro, nem as hierarquias fossem antecipadas, justamente porque o dispositivo
é experiência não roteirizável e amplamente aberta ao acaso e às formações do
presente… O dispositivo instaura uma crise desejada por quem dele participa.
(Migliorin, 2015, p. 78 - grifo nosso)
Tanto nesta pesquisa de doutorado quanto de mestrado (Nunes,
2018) que a precedeu, temos proposto exercícios inspirados nesse conceito de
dispositivo acrescido de uma especificidade: as linhas de extremo controle
propostas são extraídas de maneiras de filmar/montar presentes na filmografia
do cineclube. No mestrado, assistimos com estudantes fragmentos do filme “A
Paixão de JL”, de Carlos Nader, cuja banda sonora foi toda feita a partir da
edição de áudio de um diário gravado (em fitas cassete) nos anos 90 pelo
artista Leonilson, enquanto a montagem das imagens articularam material de
arquivo (notícias e filmes comentados pelo artista, bem como de registros de
sua obra). Baseados nessa estrutura de composição, nosso desafio propôs
submeter-se às seguintes regras (linhas de extremo controle): Cada estudante
precisa gravar um áudio falado (como fez Leonilson, no caso do diário gravado)
como se fosse uma carta para Leonilson; após isso, devemos ouvir juntos todo
material gravado, e cada participante deve escolher um dos áudios (salvo o que
ele próprio gravou) e editá-lo, para fazer a banda sonora de um vídeo que
articulará – através de computação gráfica - imagens feitas por outros autores.
Embora tenha sido difícil para os estudantes criar sob essas condições, surgiu
bastante coisa, tudo que as linhas de absoluta abertura “trouxeram”.
Uma das coisas que nos chamou atenção foi que, num dos áudios
(que acabou sendo usado na maioria dos trabalhos dos estudantes), uma voz diz
que Leonilson é bem “transante”[3].
A intensidade dessa palavra não se deu só por seu conteúdo ser ambíguo ao vir
de uma criança, mas pelo tom, a oscilação que aponta para tropeços, tateios,
resistências e aproximações cuidadosas com o que precisava ser dito. Como se
esse “transante” desestabilizasse as interpretações existentes, criando uma
linha de (sem-)sentidos que permitiria muitas dobras na frase, tentando abrir
caminho para algo que ainda não tivesse suporte dentro da linguagem. Um
“gaguejar” que acabou estremecendo todo um sistema (linguístico); como uma
linha de fuga, que, segundo Deleuze y Parnet (1998):
… é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que
é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é
sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se escapa
dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada
mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não
necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar∗ como se fura um cano... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga
quebrada. (Deleuze y Parnet, 1998, p. 30 –
grifo nosso)
O autor do áudio disse que o “transante” saiu “sem querer”,
como (b)ônus da tentativa de lidar com o Leonilson, como que tentando
sobreviver da enrascada proposta pelo dispositivo. Acabar expressando algo
imprevisto “por necessidade”, lembra a definição de estilo por Deleuze y Parnet
(1998):
Não é uma estrutura significante, nem uma organização
refletida, nem uma inspiração espontânea, nem uma orquestração, nem uma
musiquinha. É um agenciamento, um agenciamento de enunciação. Conseguir
gaguejar em sua própria língua, é isso um estilo. É difícil porque é preciso
que haja necessidade de tal gagueira. Ser gago não em sua fala, e sim ser gago
da própria linguagem. Ser como um estrangeiro em sua própria língua. Traçar uma
linha de fuga. (Deleuze y Parnet, 1998, p. 4)
Esses acontecimentos têm nos dado pistas da importância de se
trabalhar com dispositivos na escola, justamente pelas potências estéticas
(inusitadas) que podem trazer para o cinema.
Por atuarem como intervenções que fazem emergir linhas de intensidade
diversas (no cinema e na escola), consideramos os dispositivos como parte de
uma cartografia. Esta se refere a um método de pesquisa - baseado nos
pensamentos de Deleuze y Guattari (1995) e de Fernand Deligny (1971; 2009;
2015) - que acompanha processos inventivos e de produção de subjetividade, em
forte relação com o contexto espacial onde eles se dão. Para observar a reverberação dessas linhas, utilizamos diversas
ferramentas que possam apresentar o trabalho de campo através de paisagens e sensações
- como relatos, anotações e desenhos feitos em caderno de campo, presença em
intervenção semanal, filmagem das atividades com os participantes das oficinas,
reflexão sobre o material criado por eles, articulação de conversas nos
momentos de cineclube e o que mais surja de intensidade desses encontros - ao
traçar um mapa (aberto) que se configura não como a representação do que
aconteceu, mas como uma invenção da própria pesquisa, como um traço a mais na
vida comum que emergiu desse contato.
Encaro cada espaço onde esta pesquisa se realiza como um
“lugar-escola”, considerando a concepção de “lugar” abordada pela geógrafa
Dorren Massey, isto é, como a “coexistência de uma multiplicidade de
trajetórias” (Massey, 2008, p. 100) que envolve algum contato e negociação;
noção que vai além de se ater somente a parâmetros de localização, de extensão,
de origem ou de identidade. Segundo Massey (1991, p. 184) “o que dá a um lugar
sua especificidade, não é uma história longa e internalizada, mas o fato de que
ele se constrói a partir de uma constelação particular de relações”.
Ao olhar para esses lugares-escola, estamos especialmente
atentos às potencialidades de criação decorrentes do fato de serem espaços
públicos. Isto é, características que lhe conferem um tanto de tempo livre -
das obrigações impostas pelo mercado e pelo consumo – espacializado em um lugar
público; em que laços familiares, sociais e comunitários preexistentes possam
entrar em suspensão (Masschelein y Simons, 2017), propiciando que o estudante
interaja com direitos compatíveis aos de qualquer outro colega. Tal situação de
suspensão é profícua para a circulação do heterogêneo e para o
questionamento/profanação do saber instituído, potencializando relações
pedagógicas com o que é trazidas do mundo para estudo na escola. Para além de
conhecer uma escola através das imagens, buscamos acompanhar as
variações/afetações que esta proposta experimental de operar com o cinema
provoca, por atuar como nova trajetória na constelação que já compõe aquele lugar:
Uma das maneiras mais instigantes e produtivas desse cinema é
fazer emergir histórias ficcionais em estreita conexão com o vivido nos
lugares, extraindo desse vivido não propriamente aquilo que ele é – o que faria
o filme ser uma obra sobre o lugar –, mas aquilo que esse vivido pode vir a
ser, fazendo-se filme uma obra com e pelo lugar (“pelo” significa “em intenção
de” e não “em nome de”), onde devires antes não sensíveis ali podem vir a
tornar-se sensíveis. Esse cinema se imiscui no lugar e é atravessado por ele,
pelas forças e materiais que compõem as trajetórias heterogêneas que ali se
reúnem, se tensionam, se (des)articulam, produzindo sempre novos devires. Os
filmes sendo, então, mais um desses devires dos lugares onde o cinema aporta e
se mistura, se (re)inventa sem se distinguir do que nele se movimenta, seja o
vídeo, sejam as nuvens, seja a escrita, sejam as pessoas, seja a narrativa ou
os intervalos não narrativos, sejam os significados ou as linhas de fuga,
fazendo-se rizoma que se avizinha em novas conexões e derivas e… (Oliveira
Junior, 2016, p. 69)
Para Deleuze (Zourabichvili, 2004; Deleuze y Parnet, 1998), o
conceito de experimentação é um movimento de deslocamento da representação:
O pensamento remete portanto à experimentação. Essa decisão
comporta pelo menos três corolários: 1) pensar não é representar (não se busca
uma adequação a uma suposta realidade objetiva, mas um efeito real que relance
a vida e o pensamento, desloque o que está em jogo para eles, os relance mais
longe e alhures); 2) não há começo real senão no meio, ali onde a palavra
"gênese" readquire plenamente seu valor etimológico de
"devir", sem relação com uma origem; 3) se todo encontro é
"possível" no sentido em que não há razão para desqualificar a priori
certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é selecionado pela
experiência (certas montagens, certos acoplamentos não produzem nem mudam
nada). (Zourabichvili, 2004, p. 53)
Já os devires são:
… geografia, são orientações, direções, entradas e saídas.
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de
justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se
chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão ‘o que
você está se tornando?’ é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se
torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele... (Deleuze y Parnet, 1998, p.
2)
Apostamos no dispositivo como um exercício de experimentação
- uma abertura para o devir – por ele inserir ações que podem ampliar a
intensidade dos desvios, sem controlar os sentidos que resultarão dessa
intervenção, de modo a fazer emergir alguma parcela do real que já afeta a
escola mas que ainda não se fez sensível ao pensamento.
Considerando a inerente dimensão educativa e subjetivadora
que as imagens têm em si mesmas (assim como qualquer objeto da cultura), no
contato da arte com a escola observamos potencialidades de compor percursos
educativos não habituais, como outras estéticas, para além da
ilustração/comunicação/informação. Segundo Migliorin (2015), arte não se
ensina, experimenta-se:
Experimentar nos interstícios entre o mundo que existe e a
liberdade de criarmos outros. Experimentar no lugar de interpretar, como tanto
insistiu Gilles Deleuze. Podemos então dizer que o cinema é uma experiência na
transformação da realidade, em que o que está dado para se ensinar com o cinema
é um não-sei-o-quê de possibilidades. (Migliorin, 2015, p. 37)
A importância de assistir e produzir imagens juntos na escola
tem menos a ver com registrar/documentar eventos dela (como datas
comemorativas, por exemplo) ou “ilustrar melhor” conteúdos já conhecidos, e
mais com permitir que o cinema atravesse a escola com potência de arte. Ou
seja, de atuação no sensível, propiciando encontros inusitados entre signos...
abertos, inclusive, à produção de conhecimentos locais, do cotidiano daquela
comunidade escolar (extrapolando seu território, envolvendo suas famílias,
coisas/eventos de seu bairro, etc), até então não percebidos. Como assistir um
plano filmado na escola e só assim notar algo que, de alguma forma, “sempre
esteve lá” e/ou tecer relações “outras” de (sem) sentido com esses elementos
(supostamente) já conhecidos. Sobre a potência desses encontros imprevistos,
Migliorin (2015) destaca a relação entre espectador e um “regime estético das
artes”:
É nesse sentido que a dimensão estética do cinema instaura uma
descontinuidade entre obra e fruição. Seu poder reside justamente em um buraco,
em uma fenda entre os filmes e seus efeitos. Não há passagem ideal entre o que
um filme quer dizer e a experiência que se faz com esse filme. Tal
descontinuidade é própria a um certo regime de imagens que o filósofo francês
Jacques Rancière chamou de regime
estético das artes. Este regime insere o espectador em um processo em que a
fruição passa por uma recepção de signos heterogêneos, elementos que se negam,
somam, dialogam, mas que não organizam o mundo a partir de um conhecimento que
antecede a própria aparição das imagens. Uma tensão entre signos que esvazia a
própria centralidade do autor como aquele que domina os sentidos e efeitos da
obra. Ou seja, a experiência que podemos ter com o cinema é da descoberta do
mundo e da invenção deste, uma vez que o cinema nunca é o mundo e nunca deixa
de sê-lo. (Migliorin, 2015, p.37, grifo do autor)
Desta forma, apostamos numa relação com as imagens em que não
dominamos seus efeitos, onde a representação e criação de mundos estão num
mesmo gesto, como “blocos de sensações” (Deleuze, 2007) que vibram e ressoam
antes, durante e depois das projeções; através dessa experiência de cineclube
que pode ser encarada tanto como um devir para o cinema quanto para a escola.
Ao nos expor a tais “blocos”, estamos menos interessados nas formas em que as
imagens se apresentam do que nas forças que emergem como atuantes em suas
composições singulares. Forças que sentimos como efeito sobre nossos corpos
(talvez não visíveis na imagem, mas sensíveis através dela).
Ao ver-conversar-produzir junto, temos tecido uma comunidade
de cinema (Guimarães, 2015) que dá a ver as muitas fraturas do comum, uma
aprendizagem das vizinhanças que acolhe ao mesmo tempo que não tem a intenção
de fundir, onde se constituem frágeis aproximações entre trajetórias
heterogêneas. Não seria apenas tolerar ou aceitar o outro, mas, habitar na
invenção de um mundo em que algo se faça junto, mesmo que mantendo outras
coisas inconciliáveis.
O maior propósito de uma comunidade de cinema é apostar na
potência da arte de partilhar de outro modo o comum de uma comunidade, na
medida em que pode desestabilizar a distribuição dos lugares e das identidades
(p. 46). Assim, o que configura as (des) aproximações de ideias e sensações
entre as pessoas que participam desta situação de cineclube, são os afetos que
surgem da exposição a o que se assiste junto e ao acontecimento de suas falas
se fazerem presentes, circulando e sendo colocadas à prova dos demais; e não
(só) por participarem de uma mesma classe/função social, religião, bairro ou
qualquer outro tipo de comunidade/identificação preexistente à essa
experiência. Desta forma, uma comunidade de cinema está sempre porvir, não tem
um “povo” previsto/suposto.
Nesse contexto, mais importante do que preparar o grupo sobre
a imagem que será vista ou mesmo explicá-la, apostamos na experiência direta
com ela, como se fosse uma travessia: a partir da qual a realidade emerge como
impureza, como mistura, povoada de múltiplas vozes que precisarão lidar com
diversos mundos e alteridades através do cinema. Pois quando um estudante e/ou
professor atravessa um filme, sai de lá com uma inteligência dele, uma maneira
pela qual foi tocada por ele; e nessa experiência há saber.
Temos também pensado a
experimentação audiovisual na escola
como um movimento não só artístico como
também tecnológico, principalmente
encarando as tecnologias como ambientes, em vez de meras ferramentas.
Ambiente
por elas não serem “só usadas” por
nós, já que também produzem em nós
processos
de subjetivação que se propagam em rede, provocando
(des)encontros de afetos
onde podem ser tecidas alianças que (re)inventam modos de vida,
com vias a
pautar outros caminhos, bifurcações, rizomas, fugas e
desterritorializações dos
bloqueios já sensíveis.
Para potencializar experimentações tecnológicas não
hegemônicas, Fernandez-Savater defende um devir-hacker coletivo, de massas, sem
engenheiro-chefe, a partir de princípios da Ética Hacker[4].
Em “A revolução como problema técnico” (Fernandez-Savater, 2016), aponta que
estamos rodeados de “caixas negras”, que são infraestruturas fechadas e pouco
transparentes que reduzem as nossas possibilidades e gestos a uma forma
preestabelecida. E afirma que o capitalismo não triunfa diariamente por ter um
discurso convincente, mas por nos enredar materialmente em suas caixas negras.
Por isso a importância de:
… tornar comum os saberes que não são opiniões sobre o mundo,
mas sim possibilidades muito concretas de fazê-lo e desfazê-lo. Saberes que são
poderes. Poder de construir e de interromper, poder de criar e de sabotar. Um
devir-hacker colectivo são milhares de pessoas que bloqueiam num certo ponto
nevrálgico um megaprojecto de infra-estruturas que ameaça um determinado
território e as suas formas de vida. Um devir-hacker de massas são milhares de
pessoas que constroem pequenas cidades, capazes de reproduzir a vida inteira
(alimentação, saúde, estudo, comunicação, sonho, etc.) durante semanas, mesmo
no coração das grandes cidades. (Fernandez-Savater, 2016, para. 13)
Esse “espírito hacker” - que defende a liberdade do
conhecimento, ou seja, que os códigos que constroem softwares e quaisquer outro
tipo de cultura sejam abertos, compartilhados[5]
e sem propriedade - romperia com os sistemas estabelecidos e normalizados,
revelando o seu funcionamento, encontrando fissuras, inventando novos usos,
etc. Segundo o texto, um hacker é:
alguém que tem a curiosidade de criar algo novo ou resolver um
problema, um apaixonado pelo saber-fazer, um bricoleur. Podemos pensá-lo também
fora do mundo dos bytes, num sentido social mais amplo, como todo aquele que se
questiona (sempre perante o fazer) como funciona isto, como se pode interferir
no seu funcionamento, como poderia funcionar de outro modo. E preocupa-se em partilhar os seus
conhecimentos. (Fernandez-Savater, 2016, para. 11)
Diversos movimentos sociais[6]
dedicados a tecnologias de código aberto[7]
e/ou livre têm trabalhado a partir de princípios da Ética Hacker, agregando
contribuições de pessoas de vários países para criar sistemas, ambientes,
ferramentas, etc., que permitam abarcar cada vez mais maneiras de se existir e
de se atuar no mundo. Continuamente experimentando novos usos e compartilhando
essas criações desde seu projeto de origem, para uso e desenvolvimento em comum[8].
Independentemente de ser comercializado ou não, para ser considerado como
“livre”, um software deve usar uma licença - como a General Public License, por
exemplo - que garanta direitos fundamentais a seus usuários, como os de
executar, estudar e alterar seu código-fonte e redistribuir o programa;
assegurando, além disso, que suas versões derivadas também sejam livres.
No contexto de criação escolar a partir de softwares e
equipamentos tecnológicos, para que tais conhecimentos sejam cada vez mais
evidenciados e aplicados na transformação, criação e suporte direto de
realidades diversas, é preciso estimular movimentos de abertura de códigos e de
sistemas, o que tem sido cada vez mais difícil diante das atuais políticas
públicas de inclusão digital que são dedicadas à formação de (meros)
usuários-consumidores de programas proprietários (não livres e de propriedade
privada). Os atuais sistemas informáticos de escolas da rede pública situadas
em Campinas, por exemplo, têm sido cada vez mais voltados à formação de
consumidores de produtos como Google Suite for Education, Microsoft Office 365
para Educação, entre outros.
Nas escolas municipais, o sistema proprietário Windows tem
sido cada vez mais escolhido como infraestrutura, embora seus laboratórios de
informática já tenham sido atravessados por políticas públicas de implementação
do sistema livre GNU/Linux. Além disso, não é permitido que um oficineiro (ou
um professor, funcionário ou estudante) instale qualquer software em algum dos
computadores, pois só os técnicos da empresa IMA - Informática de Municípios
Associados S/A (de economia mista, cuja maior acionista é a Prefeitura de
Campinas) são autorizados para tal, através de agendamento prévio, que é
mediado pela gestão da escola. Já no caso de escolas estaduais localizadas em
Campinas, para poder usar computadores da sala de informática (o que seria um
direito), os alunos precisam efetuar login em um dos sistemas comerciais
mencionados, usando uma conta da Microsoft que foi pré-cadastrada pela
Secretaria Escolar Digital do Estado e já vinculada a seu RA (Registro do
Aluno) e que é o mesmo número de seu RG (Registro Geral de Identidade). Através
desse pré-cadastro, a empresa já acessa os dados de desempenho escolar do
estudante, além de dados pessoais seus e de seus pais (como endereço, data de
nascimento, cadastro de pessoa física, etc). Uma espécie de slogan desse tipo
de parceria entre Microsoft e Secretaria da Educação do Estado de São Paulo é
oferecer “reforço tecnológico a custo zero” (a frase aparece em várias matérias
publicadas no site da Secretaria[9]).
Já a nível federal, o IFSP Campinas também é uma escola que fez parcerias com
Google e Microsoft para que todos os e-mails institucionais de seus alunos
(@aluno.ifsp.edu.br), bem como a edição e o armazenamento na nuvem de seus
documentos e imagens – através de ferramentas do “Pacote Office 365” - sejam
oferecidos por essas empresas[10];
acordo semelhante ao da Universidade Estadual de Campinas para com seus e-mails
institucionais (@dac.unicamp.br) e aplicativos[11].
Além de capacitar e incentivar estudantes a usar softwares proprietários, o
governo brasileiro permite que essas empresas controlem o acesso (que deveria
ser público, um direito) dos alunos nos sistemas informáticos, gestionando seus
dados pessoais, de desempenho acadêmico e de quaisquer rastros digitais
decorrentes de sua existência nesses ambientes. Isso dá suporte à possibilidade
de manipulação de informação e de censura corporativa, tendo induzido
estudantes e professores a criar conteúdo artístico para “propaganda
voluntária”[12] de
aplicativos privados (bem como competir entre si, em concursos de download[13]
desses programas). Esse movimento também modula modos de vida e processos de
subjetivação (Deleuze, 2006), constrangendo formas outras (para além do que for
esperado da condição de usuário-consumidor) de transitar/intervir nesses
sistemas e conteúdos digitais que atravessam obrigatoriamente - por circularem
através de políticas públicas - contextos escolares. Assim, não só o acesso a
espaços tecnológicos, como também as criações elaboradas a partir deles, ficam
“adestradas” a existir através de vias limitadas, que não necessariamente estão
comprometidas com (e abertas a) o interesse público. Temos nos dedicado ao uso
de softwares livres por considerarmos as tecnologias envolvidas nos exercícios
de criação como espaços sociais em si (Pretto, 2017, p. 41), que envolvem muito
debate em seu desenvolvimento e uso. Essa contínua transformação e reinvenção,
potencializa relações de igualdade de inteligências (Rancière, 2015) que possam
vir a negociar múltiplos comuns. A igualdade, aqui, está sendo pensada como
reconhecer a plena capacidade dos envolvidos inventarem com o mundo em que
vivem: conhecendo, comparando, agindo e usufruindo dos sentidos humanos e das
potências de suas comunidades, seja fazendo diferença dentro delas, seja sendo
afetados por suas soluções e problemas. Assim, é possível gerar um
reparticionamento de evidências sensíveis (Rancière, 2009), que revele, ao
mesmo tempo, a existência de um comum e de como ele se presta à participação:
que lugares, quem e como os ocupa.
Desta forma, através desta pesquisa, estudantes e professores
têm entrado em contato com diversos fóruns e canais de vídeos onde milhares de
usuários conversam sobre como estão usando softwares para resolver alguma
questão estética para a qual ele não foi desenhado (ainda), ensinam como
realizar esses novos usos, bem como discutem como modificarão o programa para
fazê-lo virar outra coisa. Também participam de plataformas como a Blendswap[14]
e a OpenClipArt[15],
que compartilham projetos através de licenças Creative Commons[16].
Politicamente, tais licenças possibilitam que autores abram - na relação do
público para com sua obra - um espaço que não existia antes (não era garantido
pelas opções jurídicas anteriores), permitindo que seu trabalho possa ser
executado, estudado, copiado e redistribuído após alterado por outros autores.
Pensando nessa relação (entre autor, público e obra) como um
comum, o autor poderá organizar de outra maneira quem e como outros autores
tomarão parte dele. Isso assegura, inclusive, que uma obra que o autor deseje
que seja “livre”[17]
para
sempre, não possa ser apropriada por qualquer interesse
particular (coisa que a
condição de “domínio público”,
por exemplo - que é parecida com a de “código
aberto”, no caso dos softwares - não garantiria). Ele a
protege em nome da
liberdade e não da propriedade.
Além disso, ao abordarmos os softwares Blender 3D e Kdenlive[18],
apontamos somente um panorama de botões - para não induzir que se siga
convenções da cultura cinematográfica, como “princípios da montagem clássica”,
por exemplo - cujo uso possa chegar a ser diverso do programado, principalmente
ao ser atravessado por experimentações estéticas.
Gostaria de compartilhar uma das recentes experiências de
cineclube articulado à experimentação com dispositivos. Mas, como este
movimento de realizar oficinas presenciais nas escolas foi interrompido em 2020
pelas medidas de distanciamento social decorrentes da pandemia da COVID-19,
opto por uma parada inusitada aqui no texto também: em vez de mostrar um
dispositivo de cineclube que aconteceu na escola, abordarei um que emergiu da
minha participação no Coletivo Xilofone com Ossos, justamente durante a quarentena
da pandemia. É um relato que escrevi ao próprio Coletivo, refletindo - a partir
da dinâmica colaborativa que atravessa seu criar, assistir, conversar e se
(auto)gestionar junto - sobre um dos exercícios[19]
realizados.
Vale dizer que, inicialmente, alguns integrantes do
Laboratório Kumã se reuniam na mesma sala virtual onde seria a sessão de
cineclube. Mas uma hora antes dela começar, para cuidar da gestão do grupo e
para elaborar o dispositivo que seria proposto ao final da sessão, ou seja, o
desafio que provocaria a produção audiovisual a ser exibida na semana seguinte.
Já a experiência de criar, assistir e conversar no cineclube era aberta a
qualquer interessado, mesmo quem não fosse do Laboratório Kumã ou não tivesse
participado das reuniões pré-sessão. Após algumas semanas, essa
“gestão/manutenção do grupo e do dispositivo” passou a ser aberta também,
assim, qualquer pessoa que quiser participar dessa discussão, só precisa
aparecer na sala virtual (que é sempre a mesma) uma hora antes do cineclube
começar.
Já as obras audiovisuais elaboradas pelos participantes
durante a semana -respondendo ao dispositivo da vez - são agrupadas de forma
anônima, numa lista de reprodução que é assistida por todos durante o encontro
atual. Não há qualquer critério que defina a ordem que essas obras terão na
lista de reprodução, por isso dizemos que sua curadoria é feita pelo acaso.
O vídeo comentado a seguir surgiu da seguinte proposta: fazer
uma montagem de até 1min30s, composta por sons, textos e imagens, sendo que a
banda sonora precisa ter elementos da lista de reprodução do encontro
(anterior) dedicado a produzir sons a partir da ideia "Entre a virgília e
o sono"[20]. As
palavras, também viriam de um material já produzido: um conjunto de textos
descritivos (em 3ª pessoa e sem a utilização de adjetivo) de até cinco linhas,
que os participantes escreveram - simultânea e anonimamente, durante cinco
minutos - após ouvirmos cada bloco de 3 áudios seguidos da lista "Entre a
virgília e o sono". Já as imagens teriam que ser “novas”, isto é, captadas
para o exercício, articulando-se com esse material de sons e textos de
“arquivo”.
Tem sido terapêutico participar, tanto pela experiência de
anonimato, quanto pela dissolução das produções individuais no coletivo, já que
minhas criações se juntam às de outras pessoas e, quando assistimos em grupo,
não dá para (e, de certa forma, não importa) saber quem fez o quê. Além disso,
cada uma dessas contribuições se transforma, logo que passa a integrar a
“montagem inesperada” da exibição do conjunto.
Inesperada não só porque os autores das partes ainda não as
assistiram como integrantes de um todo (que é ver/ouvir a lista de reprodução
inteira, sem interrupções). Mas porque, em alguma medida, nos interessa não ter
absoluto controle de decisão sobre a posição de exibição desses arquivos...
então, geralmente, essa ordem acaba sendo a mesma de chegada de cada
contribuição no e-mail de quem fará a lista. Será que o acaso é o Cura-dor
dessas mostras (listas de reprodução)?
É liber(t)ador ser atravessada por diversos processos de
criação e poder colocar na mesa de trabalho coletiva um material “sem filtro”,
que eu não tenho vergonha/trava em mostrar porque sei que ele não aparecerá
ligado à minha (suposta) identidade. O potencial de cuidado dessa experiência é
genuíno, porque ela pode chegar a acolher “loucurinhas” que não teriam lugar
(ou não da mesma forma) mesmo no contato com meus terapeutas e/ou com pessoas que
me amam, simplesmente pelo anonimato não estar também instaurado nessas
relações.
É precioso ter a escuta/atenção de várias pessoas sobre essa
“massa de sons/imagens/textos” e acompanhar – curiosíssima - como ela
reverbera/vibra esteticamente. Isso vale para quando me disponho a essa escuta
também: nesse ambiente me entrego ao outro (e a mim) sem julgamento, me deixo
ser penetrada por seja lá o que for produzido pelo grupo.
É um gesto de abertura que permite tecer uma rede de
referências entre nós, em que os próximos trabalhos podem chegar a evocar
elementos presentes em exercícios passados, propiciando que alguém do grupo
lembre/vibre/seja afetado por ter vivenciado tais experiências já
compartilhadas em comum. Essas conexões podem chegar a ter uma “camada a mais”
de intensidade de significação/profundidade, certo gosto de piada interna,
sabe? É como se os corpos de cada um de nós fossem cruzados por um mesmo
conjunto de linhas-experiências de cineclube, e a cada novo exercício
pudéssemos “dedilhar”/estremecer tais linhas, como quem toca cordas de um
instrumento musical.
É curativo não ficar discriminando se tais
sons/imagens/palavras são bons ou maus, bem como seus autores… é como uma
meditação. Como se a dinâmica do grupo fosse uma espécie de liquidificador,
onde coloco coisas sem fazer ideia de com o quê (e como) elas se misturarão com
outras doações/entregas. Eu mesma não sei bem como contribuirei, pois o grupo
me faz virar liquidificador também, como um efeito-dispositivo: é que não
controlo o resultado da “minha obra”, sou parte do conjunto de acasos
disponíveis ali-naquele-momento, no processo que a materializou em bits.
Num dispositivo, o roteiro perde a centralidade, bem como a
necessidade de se chegar num lugar esperado (como quando temos o objetivo de
representar algo e/ou reproduzir uma mensagem específica, sobre o que já
sabemos/queremos, por exemplo). Passei a vida achando que tudo que eu fazia
tinha que “dar certo”, sendo essa certeza uma imagem/horizonte de existência já
conhecida previamente. E que, necessariamente, dependeria desses acertos para
continuar viva. Ora, mas perseguir algo já conhecido é repetir certa
estagnação, que é, também, uma espécie de morte, não?
Em alguma medida, achava que tudo dependeria só de mim, do
meu controle, tudo que eu criasse deveria ter absoluta elaboração e cálculo,
assim, meus filmes (textos e/ou qualquer outra coisa) teriam esse esforço
descomunal de “enfrentar os fluxos da natureza” para submetê-la ao meu desejo
(seria ele o centro das criações?).
Só que, falando em vida, tal controle inibe as possibilidades
de encontro - já percebeu? - por tentar esterilizar o ambiente das chances de
mistura. No dispositivo, as “linhas de extremo controle” existem justamente
para que meu desejo não possa controlar o que será do filme, transformando-o
numa aventura (tenho algumas pistas sobre de onde parte, mas não sei onde/como
chegará).
Participar da produção desse filme-processo-aventura envolve
atenção e abertura para fazer conexões com o que existe… é cocriar com o vento
que trouxe imprevistos para frente da câmera e com o vizinho que, de repente,
apareceu no “meu” filme sem termos combinado nada previamente, aliás, sem nunca
termos nos visto antes. É o acoplamento [meu corpo + câmera] estremecendo de
assombro (e descontroladamente riscando o filme dessa tensão) quando morri de
medo desse vizinho perceber e se zangar com a filmagem. Me assustou notar que
foi como se eu tivesse me tornado invasora num encontro que eu não fazia ideia
que existiria.
“Ter que fazer toda a banda sonora do filme necessariamente a
partir dos sons existentes já gravados pelo grupo” é uma limitação que me
“libera” profundamente, porque é como se esse limite circunscrevesse uma
“piscina” já preenchida de sons, em que meu dever é “só” nadar: dar uns pulos
para ver como a água-som vibra e o que acontece quando seus pedaços se chocam
entre si e/ou com outro tipo de materialidade.
Meu corpo ao filmar/editar não é algo descolado da obra que
está sendo produzida, como se fosse uma entidade imune aos contágios provocados
por ela enquanto a “controla”. Ele é só mais um dos elementos que participam
dessa rede descentralizada de fenômenos que se cruzam por acaso, como qualquer
outro sangue, carne, pixel, bit, som, imagem, palavra que está nessa bebida
coletiva batida no liquidificador-dispositivo-dinâmica do grupo...
Meu corpo passa a ser também imprevisto, acontecimento, dispositivo
(cheio de limitações e aberturas), “emprestado” pela obra que emerge; e que só
pode ser um emaranhado de coincidências que acabou tropeçando - dentre tantas
forças que se cruzam - como filme-processo-até-aqui-agora: um acidente.
Desta forma, criar não seria tentar impor minha vontade
apesar (como quem sinaliza a escassez) dos recursos/circunstâncias disponíveis
não serem os que eu gostaria. Seria contrário: o interessante é justamente
dançar/improvisar com seja-lá-o-que-estiver-presente (seria, então, como
celebrar certa abundância?) dentro dos limites de matéria, tempo e espaço.
Além de pensar em questões que processos audiovisuais
experimentais e colaborativos possam provocar em contexto escolar, uma educação
filosófica pode problematizar sistemas digitais privados que estão mediando a
produção e o compartilhamento de conhecimento em instituições públicas
brasileiras (mas não só) atualmente. A ocupação do espaço público escolar por
parte de tais infraestruturas já vinha aumentando de uns anos para cá e, nesta
situação de quarentena mundial (acarretada pela pandemia da COVID-19), se
intensificou, sendo apresentada por várias políticas educacionais como se fosse
a única opção.
Será mesmo que, como estudante, professor ou gestor de escola
pública, ao ter que migrar minhas atividades de um ambiente presencial para um
remoto/à distância (materializado digitalmente), preciso, necessariamente,
transitar por “chão” e “muralhas” controladas pelas corporações privadas
estrangeiras mais poderosas do mundo?
Esse tipo de controle pode rastrear, vigiar, limitar,
induzir, enfim, modular não só formas e gestos do meu corpo (composto, também,
por dados pessoais e civis) em ambiente digital e por onde/como ele pode
circular; mas também do meu discurso, ou seja, o conteúdo/debate que mobilizo e
produzo na escola. Será que nossa experiencia com tecnologias digitais tem sido
tão elaborada e gerenciada por serviços e produtos privados que nem conhecemos
qualquer outra forma de conceber relações tecnológicas? Que consequências podem
surgir das demandas de uma escola pública não serem contemplados pelos
interesses corporativos de quem fornece esses espaços/ferramentas tecnológicos?
Quando uma escola usa
uma tecnologia livre, ela pode elaborar e adaptar todos os sistemas digitais
envolvidos em suas atividades a partir das necessidades de sua comunidade,
inventando infinitas possibilidades de escuta que façam (r)existir
manifestações de encontro, diversidade e diferença. Pode também reaproveitar
aperfeiçoamentos desses sistemas feitos por outras escolas – podendo também
estreitar seus laços/trocas como rede – e lidar com os dados que trafegam por
essas vias de forma mais transparente e segundo os princípios éticos discutidos
por sua(s) comunidade(s).
É importante enfatizar que o conceito de tecnologia livre não
tem a ver com gratuidade, nem com um tipo de técnica, e sim com um conjunto de
posturas/práticas políticas. É sobre um licenciamento que respeita uma cultura
de compartilhamento de conhecimentos, ao assegurar um conjunto de direitos a
seus usuários. Neste contexto, considera-se importante que a autoria dos
desenvolvedores envolvidos nessa produção seja reconhecida em sua documentação,
e que todas as derivações do projeto continuem respeitando seus princípios;
isso ocorre para fortalecer uma rede de colaboração que só se expande e que não
poderá ser fechada por ninguém.
Vale salientar que usar um tipo de software que propicie a
uma escola a autonomia de construir as realidades digitais que precisar
(inclusive permitindo que seus estudantes contribuam diretamente na alteração
do códigos-fonte desses programas), não é suficiente para uma gestão democrática
desses fluxos de dados. Isto é, mesmo que tecnologias livres respeitem ao
máximo a possibilidade de criar inúmeras camadas de comum numa instituição,
interesses de controle e concentração de poder por parte de governos
antidemocráticos, corporações privadas e/ou mesmo de integrantes da própria
escola, podem fechar (terrivelmente!) essas portas de participação.
No caso das tecnologias proprietárias que têm sido oferecidas
como solução infraestrutural para os sistemas educacionais em escala mundial,
seu acesso é gratuito (por parte do usuário) por isso ser crucial para seu
negócio, que é vender modelos de predição de comportamento - num mercado que os
valorizam cada vez mais, seja por negócios que lucram ao manipular e induzir
possibilidades e comportamentos de consumo, seja por governos interessados em
controlar posturas sociais, políticas e econômicas - baseados nos rastros
digitais das pessoas que transitam e se manifestam em suas plataformas. Neste
caso, se o acesso fosse cobrado (modelo que já foi e ainda é muito usado na
comercialização de software), o fluxo de coleta desses dados seria menor, seria
restringido, acarretando menos lucro. Além disso, ao encararmos tecnologias
como ambientes (infraestruturas) percebemos uma forte possibilidade de concentração
de poder, pois é como ouvir: “Lhes ofereço gratuitamente a possibilidade de
lhes controlar. Quando todos vocês estiverem sendo obrigados a transitar pela
minha plataforma, poderei decidir sobre quem permito existir aqui, bem como
gestionarei como serão os fluxos de informação relacionados a essa existência”.
Desta forma, para que a escola pública possa construir e
colocar em debate/participação os espaços digitais em que ela mesma se efetiva,
é preciso contarmos com políticas públicas que financiem tecnologias
comprometidas com interesses democráticos e coletivos. Mas será que isso nos
importa de verdade? Será que qualquer gratuito já nos contempla ou queremos um
gratuito que também possibilite inventar e afirmar diversas manifestações do
comum?
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[1] Este
conceito será abordado no item 2.1.
[2] Realizei três até agora, em escolas
diferentes, em 2018 e 2019.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=KxNyZ6JSKyA&t=804s
[a partir de 00:12:13].
[4] O jornalista Steven Levy (1984/2010)
publicou um conjunto de princípios (p. 27) do que seria uma Ética Hacker. Ainda
sobre esses princípios, uma de nossas referências é o livro “A ética dos
hackers e o espírito da era da informação”, de Pekka Himanen, de 2001. Já sobre
a definição de “hacker”, acompanhamos Rafael Evangelista em “Para além das máquinas de adorável graça: Cultura
hacker, cibernética e democracia”, de 2018, por apresentar a complexidade das
diversas concepções que a atravessam.
[5] Contanto
que não se ameace a privacidade de dados pessoais dos usuários, como senhas,
documentos, etc.
[6] Dois deles
são o Movimento Software Livre <https://www.gnu.org/home.pt-br.html> e a
Open Source Initiative https://opensource.org/
[7] Um software
de “código aberto”, embora mantenha a possibilidade de acesso a seu
código-fonte, não necessariamente contempla os direitos de usuário exigidos
para ser considerado “livre”.
[8] Além da
concepção de “comum” mencionada aqui a partir de Rancière e de César Guimarães,
nos interessam as discussões mobilizadas por pesquisadores da cibercultura que
relacionam Cultura Hacker com democracia e cidadania. Algumas de nossas
principais referências são dois livros (Savazoni, 2018; Savazoni y Silveira,
2018) e as coletâneas de textos da página “Laboratórios do Comum” <https://pt.wikiversity.org/wiki/Laborat%C3%B3rios_do_Comum>
e “Biblioteca do Comum” <http://bibliotecadocomum.org/sobre>.
[9] http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/pacote-office-365-pode-ser-baixado-gratuitamente-por-alunos-e-professores
[10] https://ti.ifsp.edu.br/component/content/article/17-ultimas-noticias/498-e-mail-academico-e-office-365
[11] https://www.ccuec.unicamp.br/ccuec/sobre/projetos-iniciativas-e-parcerias/parcerias-microsoft-e-google
[12] Ver
matéria “Escolas na mira das corporações da internet”, de Fabiana Oliveira: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/escolas-na-mira-das-corporacoes-da-internet/
[13] Divulgação
da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo sobre premiar escola que somar
mais downloads do software Office 365 ProPlus: https://www.educacao.sp.gov.br/noticias/vai-ter-festa-da-microsoft-na-sua-escola-participe/
[14] A Blend Swap < https://www.blendswap.com/ > é uma das plataforma suportada por uma comunidade de
artistas que compartilha
projetos em formato de edição (.blend) do software livre Blender
3D.
[15] < https://openclipart.org/ >. Projeto internacional que
compartilha desenhos vetoriais livres publicados através da licença CC0 1.0
(domínio público), da Creative Commons:
<https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/>.
[16] Organização
não governamental sem fins lucrativos dedicada à flexibilização do
compartilhamento de obras criativas, através de licenças reconhecidas
juridicamente. Nem todas as licenças Creative Commons são consideradas livres,
como as que contém em sua descrição as restrições “SemDerivados” (ND) e
“NãoComercial” (NC).
[17] O termo
"cultura livre" foi originalmente usado em 2003, durante a Cúpula
Mundial sobre a Sociedade da Informação, para apresentar a primeira licença
livre para criações artísticas. Baseia-se nas “quatro liberdades” do Movimento
Software Livre.
[18] O Blender é dedicado à computação gráfica
e o Kdenlive à edição de vídeo.