Saberes y Prácticas. Revista de Filosofía y Educación

Saberes y prácticas. Revista de Filosofía y Educación / ISSN 2525-2089
Vol. 10 N° 1 (2025) / Sección Doossier / pp. 1-17 / Licencia Creative Commons
Centro de Investigaciones Interdisciplinarias de Filosofía en la Escuela (CIIFE),
Facultad de Filosofía y Letras, Universidad Nacional de Cuyo, Argentina.
revistasaberesypracticas@ffyl.uncu.edu.ar / saberesypracticas.uncu.edu.ar
Recibido: 25/03/2025 Aceptado: 12/05/2025
DOI: https://doi.org/10.48162/rev.36.141


Por uma escuta inoperante: comunidades de infância nas fissuras entre vozes e palavras

For An Inoperative Listening: Communities Of Infancy in The Cracks Between Voices and Words

Por una escucha inoperante: comunidades infantiles en las fisuras entre voces y palabras


Identificador ORCID de la autora: Magda Costa-Carvalho

Universidade dos Açores, Portugal

magda.ep.teixeira@uac.pt


Resumo. A palavra ‘infância’ carrega na sua origem etimológica o afastamento entre as crianças e a voz. No entanto, as vozes das crianças estão aí: acontecem a todo o momento e chegam a surpreender-nos pela pertinência social e política das suas intervenções. O presente texto instala-se nesta perplexidade, procurando recuperar sentidos distintos para a “voz” (não apenas num significado derivado da palavra, entendida enquanto ‘participação’, mas também no seu sentido literal enquanto conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador), no contexto da abordagem pedagógica e filosófica conhecida por ‘comunidade de investigação filosófica’ (community of philosophical inquiry). Procura-se recuperar alguns lugares que têm sido atribuídos às vozes das crianças em diferentes interpretações da comunidade de investigação. Seja enquanto lugar para uma participação democrática de todos os seus membros, independentemente da idade que tenham, seja enquanto oportunidade para a expressão livre e criativa das vozes que a compõem, ou ainda como desafios críticos ao modo como as atuais democracias excluem determinadas emissões acústicas, nos últimos anos têm surgido propostas que permitem recuperar a fonética das vozes infantes no âmbito dos diálogos filosóficos com crianças. Uma dessas propostas consiste numa prática do diálogo filosófico que recusa critérios operativos de validação ditados por dispositivos pedagógicos de mensuração e aperfeiçoamento de competências ou habilidades: a “comunidade de infância” (community of infancy). A nossa proposta não é entender a comunidade de infância como alternativa exclusiva à comunidade de investigação filosófica, mas como acontecimento que, podendo emergir por entre as vozes e as palavras da investigação, permite uma escuta inoperante (inoperative) daquilo que habita foneticamente as fissuras (cracks) do diálogo partilhado. Esta é a escuta que acolhe as palavras nas suas diversas materializações fonéticas, aceitando que o pensamento emerge quando se diz e se articula, mas também quando se hesita, gagueja ou balbucia.

Palavras-chave. voz; escuta inoperante; comunidade de investigação filosófica; comunidade de infância; balbuciar

Abstract. The word “infancy” encloses in its etymological origin the distancing between children and their voices. However, the voices of children are there: they happen every moment and they even surprise us with the social and political relevance of their interventions. This text builds on that perplexity, trying to retrieve distinct meanings for the “voice” (not only in a meaning derived from the word, understood as ‘participation’, but also in its literal sense as a set of sounds emitted by the vocal apparatus), in the context of the pedagogical and philosophical approach known as ‘community of philosophical inquiry’. We try to recuperate some of the places which have been attributed to children's voices in different interpretations of the community of inquiry. Be it as a place for democratic participation of all its members, regardless of their age, or as an opportunity for the free and creative expression of the voices that are a part of it, or even as critical challenges to the way in which current democracies exclude certain acoustic emissions, in recent years proposals have emerged that allow us to recover the phonetics of infant voices in the context of philosophical dialogues with children. One of such proposals consists of a practice of philosophical dialogue which rejects operational validation criteria dictated by pedagogical devices for measuring and improving skills or abilities: the “community of infancy”. Our proposal is not to understand the community of infancy as an exclusive alternative to the community of philosophical inquiry, but as an event which, insofar as it may emerge among the voices and words of the investigation, allows for an inoperative listening of that which phonetically inhabits the cracks of the shared dialogue. This is the listening that receives the words in their various phonetic materializations, accepting that thought emerges when one speaks and articulates, but also when one hesitates, stutters or babbles.

Keywords. voice; inoperative listening; community of philosophical inquiry; community of infancy; to bable

Resumen. La palabra «infancia» lleva en su origen etimológico la distancia entre los niños y la voz. Sin embargo, las voces de los niños están ahí: ocurren todo el tiempo y nos sorprenden por la relevancia social y política de sus intervenciones. Este texto se sitúa en esta perplejidad, tratando de recuperar diferentes significados para «voz» (no sólo en una acepción derivada de la palabra, entendida como “participación”, sino también en su sentido literal como conjunto de sonidos emitidos por el aparato fonatorio), en el contexto del enfoque pedagógico y filosófico conocido como «comunidad de indagación filosófica». El objetivo es recuperar algunos de los lugares que se han atribuido a la voz de los niños en diferentes interpretaciones de la comunidad de indagación. Ya sea como lugar para la participación democrática de todos sus miembros, independientemente de su edad, o como oportunidad para la expresión libre y creativa de las voces que la componen, o incluso como desafíos críticos al modo en que las democracias actuales excluyen determinadas emisiones acústicas, en los últimos años han surgido propuestas que permiten recuperar la fonética de las voces infantiles en el contexto de los diálogos filosóficos con los niños. Una de estas propuestas consiste en una práctica de diálogo filosófico que rechaza los criterios de validación operativa dictados por los dispositivos pedagógicos de medición y mejora de competencias o habilidades: la «comunidad de la infancia». Nuestra propuesta no es entender la comunidad de infancia como una alternativa exclusiva a la comunidad de investigación filosófica, sino como un acontecimiento que, pudiendo emerger entre las voces y las palabras de la investigación, permite una escucha inoperante de lo que habita fonéticamente las grietas del diálogo compartido. Una escucha que acoge las palabras en sus diversas materializaciones fonéticas, aceptando que el pensamiento emerge cuando se dice y se articula, pero también cuando vacila, tartamudea o balbucea.

Palabras clave. voz; escucha inoperante; comunidad de indagación filosófica; comunidad de infancia; balbuceo.


’est que nous sommes, nous existons dans le partage des voix, et que ce partage fait ce que nous sommes […]

Jean-Luc Nancy, Le partage des voix, p. 83


A infância nas vozes da memória


O livro mais conhecido da escritora italiana Natalia Ginzburg intitula-se Lessico famigliare (Léxico Familiar) e conta, em registo autobiográfico, episódios e ambientes da vida da sua família durante a primeira metade do século XX. Tendo como pano de fundo uma Itália que se reconfigurava com a ascensão e vigência do fascismo, vamos acompanhando nas suas memórias de infância os relatos domésticos de uma família, imbuídos das grandes mudanças sociais e políticas dos anos da 2.ª Grande Guerra.

A escrita não parece querer tanto documentar as mudanças ocorridas no tecido público de uma Europa que sofria grandes impactos da guerra, mas contar uma micro-história. Ou antes, relata-nos uma série de microepisódios a partir das memórias de uma então menina, sobre o fundo da macrohistória europeia da primeira metade do século XX. O que acompanhamos são memórias de infância. Natália, a escritora e narradora, era uma das crianças desta família durante o tempo da ação, assumindo-se apenas como testemunha. Não pretende adotar o ponto de vista privilegiado de um narrador-personagem central na construção do romance, mas limita-se a contar aquilo que a memória conservou da sua infância e juventude. Ou seja, sobretudo cenários da vida interior e familiar dos membros da família Levi.

Confusões e altercações domésticas, encontros de amigos, namoros gorados e viagens à montanha, novidades da moda europeia que chegavam a Itália, lições de russo e aulas de piano, móveis e decorações interiores, conversas sobre livros, jantares, hábitos e deslizes das criadas, as rotinas das crianças, as preferências da mãe e as obstinações do pai, tudo através das vozes e palavras escutadas pela criança que Natália foi.

Cada memória relatada por Natalia Ginzburg parece ter um elemento central: a importância das palavras, ou melhor, de algumas palavras e frases proferidas por um determinado membro da família em certos episódios-chave. O léxico. Expressões que, com alguma dramaticidade ou comicidade, marcaram a vida dos envolvidos num certo momento e que, à força de serem posterior e continuamente reinvocados e recontados pelos restantes membros da família, instituíam-se tacitamente como cortes sonoro-lexicais na vida dos Levi. A história conta como esses episódios vão sendo reinvocados ao longo do tempo e como, nessa reinvocação a várias vozes, se transformam na própria matéria narrativa que faz desta família aquilo que ela vai sendo e, sobretudo, que constrói a infância da menina Natalia.

 Contar e recontar estes episódios ao longo do tempo vai dando lugar apenas ao invocar de uma frase, de uma expressão simples que se tornava uma espécie de senha para a cumplicidade da família. Eram essas expressões que, mais do que ilustrarem os episódios relatados, constituíam a sua própria existência. O léxico tornava-se, assim, familiar. E a família reencontrava-se nas próprias palavras e vozes.

Mas talvez Natalia Ginzburg vá um pouco mais longe, chamando a nossa atenção para o modo como estas enunciações lexicais constituem a própria infância que delas se recorda. As palavras ditas constituem infâncias enquanto memória. Mesmo que o tempo cronológico passe, estas enunciações tornam-se senhas de acesso às “relações de outrora” porque a própria infância está indissoluvelmente ligada a elas (Ginzburg, 2019, p. 26). São acessos diretos ao que sobrevive à voracidade do tempo cronológico, ressonâncias longínquas através das quais o presente atualiza o passado.

No caso da família Levi, o que a escrita do romance parece transparecer é que, para além das palavras em si mesmas, na construção rememorada daquele léxico familiar, conta igualmente o modo específico como essas palavras e frases foram enunciadas e, sobretudo, as características das vozes que as proferiram. A fonética das vozes torna-se parte imprescindível do exercício de rememoração:

Essas frases são o fundamento da nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no mundo, recriando-se e ressuscitando nos pontos mais diversos da terra, quando um de nós disser: ‘Ilustre signor Lipmann’, e ressoar então nos nossos ouvidos a voz impaciente do meu pai: - Deixa lá essa história! Quantas vezes não a ouvi já! (Ginzburg, 2019, p. 26)

As memórias da menina Natália configuram um relato da infância a partir da sonoridade das vozes circundantes. Nos ouvidos de quem conta esta história ressoam vozes muito concretas. É surpreendente o modo como Natalia Ginzburg insiste na dimensão vocalizada desse léxico e como a sua escrita nos convida a pensar uma infância aberta à materialidade dos sons das vozes que enchem os espaços acústicos habitados.

Tagarelices, dificuldades de pronúncia, rr carregados, exclamações, vozes cantantes e moduladas, vozes grossas, gritos guturais, vozes indecisas, vozes fortes ou profundas são algumas das características que, no livro, constantemente descrevem as personagens e que a autora ressalva nas suas memórias de menina. A presença vocal mais forte nessas ressonâncias é, sem dúvida, a voz forte, trovejante e intransigente do pai de Natalia. A construção narrativa da personagem paternal faz-se sempre a partir das vocalizações exageradas e abusivas, tantas vezes intolerantes, de um homem austero, mas, sobretudo, sonoro. Não é, aliás, à toa que o livro começa e termina precisamente com descrições enfáticas da voz do pai, como se a autora nos quisesse dizer que a infância começa e termina em certas vociferações que ecoam na memória.

Ao lermos estas páginas quase conseguimos escutar a menina Natalia, como qualquer outra menina ou menino, cuja infância acontecia na acústica dos corredores, quartos, salas, espaços de infância, pequeno corpo reverberando memórias sonoras.


Uma escuta fala infância


Percorremos com Natalia Ginzburg alguns registos memorísticos de sonoridades e vozes para descobrirmos como a voz pode ser também um elemento desenhador de infância ou, dito de outra forma, como podemos encontrar a infância no rememorar das vozes que nos atravessaram e atravessam. Estamos nos antípodas de uma leitura desvalorizadora da escuta, que a entenda como presença fugaz cuja ação se resuma ao simples tempo de ativação mecânica do ouvido (Jonas, 2001, p. 137). Não já uma escuta primeira dos índices, mas o que Roland Barthes designa como uma “segunda escuta”, a escuta do sentido, do mistério que convoca uma hermenêutica: “escutar é colocar-se em posição de decodificar o que é obscuro, confuso ou mudo, para fazer com que venha à consciência o ‘lado secreto’ do sentido” (p. 220). Neste caso, a escuta de vozes que falam e “[…] em que o silêncio do ouvinte seria tão ativo quanto a palavra do locutor: a escuta fala […]” (p. 222).

Esta escuta fala convida-nos a pensar a infância a partir de emissões vocais cuja ressonância se estende para além da linearidade de uma cronologia. Não deixa de ser curioso se pensarmos que, etimologicamente, “infância” significa precisamente uma ausência de fala (do Latim infantia: in negação; fari falar) e, sobretudo, como esta origem do conceito tem marcado séculos de relações entre as crianças e o exercício fonético. Relações de desconsideração das emissões fonéticas próprias da infância e da consequente domesticação dos seus usos da voz, assim como de desatenção às suas escutas na constituição de si.

Na linha de perspetivas desenvolvimentistas sobre a infância, sobretudo de inspiração psicológica, a relação entre as crianças e a voz – a voz escutada e a voz dita – tem-se perspetivado maioritariamente a partir da aquisição da competência da fala ou do chamado desenvolvimento linguístico: a aquisição de competências semânticas e fonológicas. Isto é, como desejável aprendizagem de normas fonéticas e semânticas para o domínio de um determinado código linguístico.

Nesse contexto normativo do processo de fonação, a voz aparece como mediação sonora para a aprendizagem do discurso. Este entendimento da voz enquanto função linguística reforça politicamente a posição aristotélica segundo a qual a humanidade se distingue da animalidade precisamente pela passagem da voz (simples phoné) ao discurso (complexo logos) (Aristóteles, Política, 1253a10-17). Seguindo Aristóteles, poderíamos dizer que a voz-apenas-som seria mero índice de prazer ou sofrimento, mas a voz-feita-discurso captaria a normatividade que permite fundar o justo e o injusto, o desejável e o indesejável, competência imprescindível para a produção da polis.

As crianças compõem, aqui, a ponte de ligação entre o animal e o humano, o momento fulcral de abandono de um exercício da voz enquanto mero fluxo sonoro de um aparelho fonador (que, afinal, é comum a muitas outras espécies), um elemento a docilizar e a superar para a constituição plena do (único) animal político.

Embora reconhecendo a importância desta linha de trabalho na constituição de comunidades falantes, que tanto esta desconsideração dos usos da fala característicos das crianças pode ter influenciado o modo como pensamos as relações entre voz e infância? E que tanto pode estar a ficar perdido nos interstícios e fissuras de uma leitura das vozes das crianças como lacunar e imperfeita? Que outros caminhos se podem fazer anunciar na infância narrada por Natalia Ginzburg, nas sugestões bartheanas de uma escuta fala, nos encontros filosóficos que temos com crianças e com as suas vozes?


Comunidades de investigação filosófica, comunidades de infância


Colocamos estes questionamentos especificamente no âmbito do trabalho filosófico com crianças, na linha da abordagem conhecida como “comunidade de investigação filosófica” (Striano, 2011; Echeverria & Hannam, 2017). Surgida no âmbito do Programa Curricular designado como Filosofia para Crianças (Sharp, 1987; Lipman, 2003; De Marzio, 2017), proposto pelo IAPC: Institute for the Advancement of Philosophy for Children, a comunidade de investigação filosófica constituiu-se como uma abordagem epistemológica, ética e política ao diálogo filosófico com crianças. Ao longo das últimas décadas, a comunidade de investigação filosófica tem-se autonomizado desse contexto pedagógico e filosófico inicial, assumindo diferentes contornos e reconfigurações (Kennedy & Kennedy, 2012; Vieira, 2019).

Algumas considerações da comunidade de investigação orientam-se pelos objetivos de um domínio crescente de habilidades discursivas e da consequente aquisição de competências argumentativas complexas, fundamentais a uma conceção de filosofia enquanto discurso racional lógico e abstrato (Splitter, 2022; Bouchard & Daniel, 2018). São abordagens focadas essencialmente nas dinâmicas cognitiva e metacognitiva da construção de posições partilhadas sobre os assuntos em diálogo. Se nos restringirmos a estas leituras, seremos recordados dos ditames aristotélicos que guardam para a voz um enquadramento meramente funcional. A voz será aqui um mero veículo comunicante, elemento fonético importante por aquilo que traz de não-apenas-fonético: a sua emissão dirige-se a um exercício disciplinador conducente a um registo sonoro propício à expressão clara e articulada de palavras e ideias. A escuta que esta representação da voz convoca foca-se, então, naquilo que, nela, está para além dela.

Contudo, esta configuração essencialmente cognitivista da comunidade de investigação tem recebido distintas leituras críticas (Kohan, 2006; Murris, 2015; Chetty, 2018; Elicor, 2020) e aberto ao longo das últimas décadas para variadas propostas renovadoras (Haynes & Murris, 201; Jasinski & Lewis, 2016; Johansson, 2018). Nestas reconfigurações, a fala e a própria voz das crianças têm emergido como aspetos a tomar em consideração nas concretizações do trabalho filosófico com crianças, num entendimento que parece extrapolar uma simples dimensão funcional cognitiva e apontar para registos sociais e políticos de maior complexidade. Aliás, os recentes movimentos de renovação da comunidade de investigação apontam para exercícios críticos que nos convidam a regressar aos começos da nossa relação com a infância, num sentido propriamente filosófico de autoquestionamento não só desta abordagem filosófica e pedagógica, mas do próprio modo como habitamos politicamente o mundo (Rollo, 2021).

Inserimos a nossa proposta nesta linha, considerando que as vozes das crianças pertencem aos espaços partilhados em que elas habitam. Uma simples escuta dos seus discursos será suficiente para percebermos que têm muito para dizer e que, se não as escutarmos, estamos a perder inúmeras possibilidades de recriarmos o mundo (Reynolds, 2024). A comunidade de investigação filosófica tem sido entendida como o espaço apropriado para esse exercício de participação cívica das crianças, exigindo por parte de quem escuta o respeito e a responsividade que as encorajem a continuar (Mohr Lone, 2020). Pensar filosoficamente em comunidade, procurando identificar perguntas e polir conceitos, numa dinâmica questionadora de exploração conjunta que permita explorar os sentidos das experiências próprias e alheias, é possível através de um contínuo balanceamento entre escutar e falar e, até, de exploração de novas formas de dizer (Weber, 2020, p. 40).

Os praticantes e estudiosos da comunidade de investigação filosófica têm mostrado inúmeras as possibilidades de explorar práticas discursivas em que vozes sem filtros e vozes marginais se comprometem na criação de sentidos comuns de mundo, de formas experimentais, transformadoras e, sobretudo, politizadoras (Fletcher, 2016). A comunidade de investigação filosófica releva-se, assim, como uma oportunidade criativa e multifacetada para as crianças se expressarem livremente e fazerem ouvir as suas vozes. Esta possibilidade tem sido reclamada sobretudo grupos excluídos, como sejam crianças que pertencem a contextos sociais e políticos deteriorados (Kizel, 2016). Mas também têm sido feitos alguns avisos: as potencialidades da comunidade de investigação como abordagem pedagógica só se concretizam se os adultos responsáveis pelas atividades evitarem atitudes de poder e controlo (Anderson, 2020, p. 18). E aqui encontramo-nos perante nós mesmos.

Parece-nos importante seguir filosoficamente por este trilho crítico dos lugares da voz, não só questionando os pressupostos originais da comunidade de investigação, mas também explorando formas diversificadas de a operacionalizar. E, acima de tudo, desconfiando dos papéis que, nela, nos reservamos. Recuperamos mais alguns passos, entretanto já dados: as vozes das crianças podem colocar-nos a nós, adultos promotores de encontros filosóficos, em questão (Frias, Diniz, Carvalho, 2023), atrasando os ritmos frenéticos nos quais embalamos, mesmo que involuntariamente, a nossa ação educativa. Escutar essas vozes pode por em causa a organização institucional educativa, mas pode ser uma experiência que ecoe retumbantemente até aos espaços públicos mais amplos. Considerar as vozes das crianças pode abrir “movimentos polifónicos” e ousar a construção de novas organizações políticas, “novas formas de polis: poli(s)fonias” (Matos & Vieira, 2023). As possibilidades que se abrem são imensas.

Todavia, a acústica das vozes infantis em comunidade de investigação também pode perturbar a própria imagem do pensamento em que operamos. A homogeneidade metafísica que privilegia o registo estritamente mental – e, logo, silencioso – do pensamento, presa a um universalismo filosófico que desconsidera a singularidade de cada voz, é o registo que herdamos da tradição filosófica ocidental (Cavarero, 2005). Atender, no exercício filosófico do pensamento em comunidade, ao acontecimento das vozes é abrir espaço para que os exercícios de emissão e de receção do dito sejam infetados pelas modulações e variações fonéticas. A ousadia de escutar as características acústicas das vozes pronunciadas, entendendo o conceito de voz para além do sentido social de mera participação, arrasta-nos para um exercício do pensamento que descobre a relevância filosófica da materialidade de um aparelho fonador (Costa Carvalho, 2022). O evento material da escuta e da afetação abre, assim, a possibilidade de pensarmos o efeito que a materialidade acústica do dito pode ter no pensamento desencadeado numa comunidade de investigação que se assume como comunidade filosófica de vozes (Costa Carvalho, Almeida & Taramona, 2023).

Colocamo-nos, assim, na rota de uma das mais interessantes e ousadas reconfigurações da comunidade de investigação filosófica: a comunidade de infância, proposta por Igor Jasinski e Tyson Lewis (2016; Jasinski, 2018). Resistindo à cooptação da comunidade de investigação por mecanismos quantitativos de aprendizagem progressiva, focados no melhoramento de competências argumentativas dos estudantes, estes autores propõem uma leitura do diálogo filosófico com crianças a partir de um fundo agambeniano, ressalvando as noções de infância e de discurso do filósofo italiano. Jasinski e Lewis são perentórios na sua proposta:

O problema da comunidade de investigação - tal como Lipman a teorizou originalmente - é que depende parasitariamente da infância, ao mesmo tempo que a renega e, neste gesto, alinha-se com o tempo da aprendizagem ritualizada. O risco de interrupção é trocado por mais uma instrumentalização progressiva da infância. O que se perde é precisamente a experiência da liberdade de ser de outro modo, sem qualquer noção preconcebida do que esse outro modo possa ser, antes da experiência mais básica e fundamental da sua própria potencialidade. Neste sentido, viver uma comunidade de infância é precisamente romper com a lógica do ritual e do jogo que define as polaridades mais extremas da experiência educativa atual. (Jasinski & Lewis, 2016, p. 9).[1]

A comunidade inoperante ou ociosa a que se referem situa-se num meio termo entre salas de aula ritualizadas em torno de uma produtividade que se mede e padroniza e salas de aula desestruturadas por uma ludicidade totalmente descomprometida. E os autores acrescentam: “O que está em jogo para salvar a FpC [Filosofia para Crianças] dos imperativos de aprendizagem e dos resultados mensuráveis é precisamente a preservação da liberdade que se encontra no espaço e no tempo do jogo estudioso que os alunos encontram quando balbuciam.” (Jasinski & Lewis, 2016, p. 7).[2]

A comunidade de investigação concebida de modo tradicional (que, acima, designamos como cognitivista) centra-se numa comunicação de ideias e na construção partilhada, intencional e articulada, de procedimentos argumentativos. A voz afirma aí uma dimensão funcional porque, como vimos, é entendida exclusivamente enquanto instrumento fonético para expressar o que é da ordem semântica do discurso organizado. Por isso, tudo o que não seja do domínio da articulação verbal normalizada tem de ser tendencialmente corrigido pelo adulto responsável, já que o seu papel é promover um exercício eficiente da racionalidade argumentativa. Já a comunidade de infância resiste à instrumentalização da infância e de todos os seus registos, incluindo o vocal, desativando a procura de um formato razoável do discurso em prol de uma experiência das fissuras fonéticas e semânticas que se descobrem nesse mesmo exercício. Trata-se de promover um encontro com o próprio mistério do discurso e da voz, de que fala Agamben em diferentes momentos da sua obra (2006; 2008). Este exercício filosófico, sem recusar a importância das palavras e da articulação discursiva, aceita o risco da interrupção infantil de um modo fechado e já cristalizado de pensar o mundo.

Jasinski e Lewis falam-nos com palavras fortes: seguir a opção cognitivista da comunidade de investigação é mais do que instrumentalizar a infância porque implica renegá-la e, pior, parasitá-la. Por isso, propõem recuperar nos ambientes acústicos e semânticos da comunidade de investigação o que se encontra nas margens e nas fissuras da linguagem, aquilo mesmo que a torna possível. Registos como o balbucio, o gaguejo ou a hesitação são acolhidos na comunidade de infância enquanto formas de expressividade não necessariamente comunicante, que recuam até antes das normas de razão e de verdade orientadoras das intervenções da voz do professor.

 Quando o professor suspende a soberania da sua voz estará, então, a permitir uma experiência partilhada do discurso fora de um registo racional pré-determinado e, necessariamente, excludente de certos registos fonéticos. Garante, assim, que os participantes desta comunidade – crianças e adultos – recuem até uma experiência disruptiva do próprio facto de que falam e de que têm voz, antes de qualquer pré-determinação linguística racionalizante. Tratando-se de uma comunidade inoperante, o diálogo filosófico não se torna refém da produção de novos sentidos, mas tempo e espaço para o encontro com a própria potencialidade de existirem novos sentidos e significados.


Políticas da escuta de vozes infantis


Seguindo os rastos destes autores, ousamos dizer que podemos desconsiderar a infância quando escutamos, nas vozes das crianças, apenas o seu uso discursivo-semântico. Atender a esse discurso enquanto simples resultado ou produto é entender as palavras ditas por diferentes vozes como se não fossem materializações diferenciadas acusticamente. É agirmos como se a emergência das enunciações não decorresse de um processo expressivo muitas vezes vacilante e indeciso. É coartar a liberdade original presente na própria infância do discurso.

O nosso questionamento mantém-se à procura daquilo que podemos estar a perder nesse processo. E regressamos aos encontros com as crianças através da escuta dos primeiros minutos de uma gravação áudio de uma atividade filosófica decorrida no âmbito do projeto escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política[3]. Procuramos seguir os ecos das leituras que temos estado a seguir até aqui e retornamos a este áudio de forma inoperante. Não viemos à procura de nada, não nos colocamos na posição da investigadora que segue os rastos de uma descoberta. Escutamos apenas e rememoramos, na acústica das vozes pronunciadas, a experiência de pensarmos em conjunto.

Leiamos agora a transcrição possível do excerto dessa gravação áudio das vozes das crianças e dos adultos que fizeram parte da comunidade naquele dia, trazendo-as para este texto na forma de registos escritos:

 

[…] Rafael: A gente come as

palavras.

Paula: A gente come as

palavras, não era?

Rui: E a gente só pode dizer

uma vez...

Paula: Diz, Rui?...

Rui: Hum... a gente pode dizer

uma vez ou a gente fica com

aquelas e a gente...?

Paula: Isso é uma pergunta,

não é?

Rui: Dá uma!

Paula: Portanto, queres fazer a

tua pergunta, Rui, diz lá... essa

era a tua pergunta que

também já...

Rui: eh... Quando a gente diz e

fala, a gente faz a palavra ou a

gente continua com ela?

Paula: Pois é...

Rita: Quando a gente diz essa

palavra a gente fica mais

tempo.

Paula: [sorri]... sim... E tu és a

Marta?

Rita: Rita.

Paula: Sim, Rita, peço

desculpa, sim...

Rita: A gente fala palavras e

escreve.

Paula: Hum... escrever as

palavras, sim... Samir, diz lá!

Samir: A gente passa e no

passado a gente via aqueles

cabelos estranhos.

Paula: Aqueles quê..?

Samir: Cabelos estranhos.

Rita: Ah, sim!!!

Paula: Ah, sim! No livro! Ok,

sim... E tu, queres dizer

alguma coisa, Luana?

Luana: Estou pensando

ainda...

Paula: Vamos continuar a ler a

história?

Magda: Vamos! Já nem me

lembro onde é que ficou...

Menina: hum...

Paula: Onde é que nós

ficamos?

Lourenço: hum... a gente ia...

[Todas as crianças imitam o

Lourenço e fazem o mesmo

som: hum... hum...]

 

Paula: Hum! Cá está! “Hum...”

Há perguntas que têm este

som: “hum...”

[As crianças prolongam o som:

hum... hum...]

Paula: Há perguntas que têm

som...

Magda: Há perguntas que têm

este som, que é o som das

coisas doces...

Todas as crianças: Hum...

Magda: Pode ser que haja

outras perguntas que têm

outros sons... vamos ficaratentos! […]

Este diálogo aconteceu como tantos outros, um corte no meio de uma longa conversa entre professoras responsáveis pelas atividades de filosofia na Escola António Santos Botelho, em Vila Franca do Campo, S. Miguel, Açores, e um grupo de crianças do 2.º ano, com 7 e 8 anos. O grupo conversava na sequência de uma atividade decorrida na semana anterior, acompanhando a leitura conjunta do livro A Grande Fábrica das Palavras, de Agnès de Lestrade e Valeria Docampo (2012). O livro conta a história de três crianças que vivem num país onde as pessoas quase não falam por que é preciso pagar para dizer cada palavra. As palavras têm um custo associado, mas nem todas valem a mesma quantia: palavras mais complexas exigem maiores recursos (como “Amo-te do fundo do meu coração.”) e palavras menos consideradas socialmente chegam a ser encontradas no lixo (como “excrementos de cabra” e “rabos de coelho”). As crianças logo se entusiasmaram com a história, com o humor da escrita, mas sobretudo com as relações amorosas entre as três personagens: Sara, a menina, Filipe, o vizinho pobre que guarda palavras só para ela, e Óscar, o admirador abastado que pode esbanjar palavras.

Regressamos a estes registos num balanceamento entre o que nós – investigadora – podemos escutar no dispositivo gravador móvel que registou o diálogo e o que vós – leitores – podem adivinhar nas fissuras e espaços que as reticências e as interjeições transcritas procuram arejar.

Será, por isso, importante começar por sublinhar a perda epistémica ocorrida no exercício da transcrição porque aos leitores não estão acessíveis os registos sonoros do que aconteceu, isto é, as inscrições acústicas que marcaram a materialidade das trocas entre o Rui, a Rita, o Samir, o Lourenço, a Paula, a Magda e todas as outras pessoas presentes na atividade de cujas vozes gravadas não nos chegaram registos suficientes para que, alguns meses ocorridos, as pudéssemos agora nomear. Nos filtros da escrita fica invariavelmente excluída a maior parte dos contributos que se configuram como hesitações pré e para-verbais, gaguejos, sorrisos e outras diferentes marcas da oralidade dos falantes.

Aliás, acrescentamos, as práticas mais comuns de transcrição e análise discursiva em investigação visam ultrapassar precisamente tudo o que fica para lá da semântica do dito, entendido como ruído, o que demonstra mais uma vez a desconsideração a que a fonética das vozes é votada. Por vezes, é até permitido aos investigadores retocarem as palavras ditas – sobretudo quando se trata de diálogos com crianças – para não colocarem em causa a inteligibilidade dos conteúdos e manterem a relevância do trabalho realizado. É também comum o uso de [parêntesis retos] para indicar os cortes ou acrescentos introduzidos pelo próprio investigador, em nome da clarificação da semântica do dito.

Há um claro cunho político nas práticas de escuta, uma vez que instauram dinâmicas de inclusão e de exclusão (Bickford, 1996), aspeto que fica bastante parente no contexto de práticas de investigação. A tendência para ignorar a materialidade do que se escuta, em nome da clareza e da transparência do sentido, configura-se como processo que negligencia as intensidades e as singularidades das vozes corpóreas. Mas como podem estas corporeidades deixar de fazer parte das pesquisas? Que efeitos têm essas exclusões? Textualizar narrativas orais carrega a violência dos dispositivos de transcrição que deixam de fora hesitações, repetições, pausas, reviravoltas, silêncios, vibrações (Tamboukou, 2020).

O nosso excerto hesita e gagueja inoperativamente e os intervenientes parecem a tatear à procura de formas de dizer. Se percorrermos a gravação à procura de uma construção de sentidos que revele descobertas partilhadas ou conhecimento formulado, teremos de saltar por cima do realmente dito e procurar adivinhar aprendizagens que registem as interpretações operativas que as crianças fizeram a partir do que leram. Duas adultas interagem com um grupo de crianças e caminham no sentido de as ajudar a articular ideias que elas apenas ensaiam verbalmente. Se seguíssemos este procedimento interpretativo, encontraríamos dois momentos com algum interesse operativo: quando a Paula utiliza vocabulário comum na investigação filosófica com crianças, que permite nomear o ato de pensamento que o Rui exemplificava (“Portanto, queres fazer a tua pergunta, Rui, diz lá...”) e quando a Magda orienta os próximos exercícios de escuta (“Pode ser que haja outras perguntas que têm outros sons... vamos ficar atentos.”). Ambas intervêm cuidando da qualidade da própria investigação, investindo na semântica do discurso proferido e lançando bases para as futuras trocas entre os participantes.

O resultado destas práticas, do ponto de vista da presença da voz na construção do pensamento, é a sua total exclusão dos elementos a considerar, sobretudo quando já estamos no momento de transcrição e análise do que foi proferido. Pouco importam os modos como o Rui, a Rita, o Samir, o Lourenço, a Paula e a Magda vocalizaram o que disseram, os sons emitidos que foram selecionados para a transcrição são apenas os que configuram as palavras ditas. A voz reafirma-se como sobra ou resto: mera função do sistema linguístico cujo destino é o discurso. Como afirma Adriana Cavarero: “O preconceito fundamental diz respeito à tendência para totalizar este destino, de modo que, fora do discurso, a voz não passe de um resto insignificante.”[4] (2005, p. 12).

No fundo, o exercício de transcrição que adotamos neste texto mais não faz do que reproduzir o quadro referencial presente na maior parte das interações orais com crianças em contextos educativos, seguindo o modelo discursivo da racionalidade e da razoabilidade. Transcrever é tornar as vocalizações silenciosas e o que se perde nesse exercício é em tudo idêntico àquilo a que desatendemos quando interagimos com as crianças. Mesmo em comunidades de investigação filosófica.

Mas a verdade é que a esfera da voz é constitutivamente mais ampla do que a esfera do discurso, excedendo-o. Estava antes dele, está para além dele e estará depois dele: na pré-verbalidade, na para-verbalidade e na pós-verbalidade. É certo que a própria invocação destas três categorias revela a força com que o discurso, instaurando-se como destino final da voz, é também validado como critério de considerabilidade da própria voz. Mas e se persistíssemos numa outra escuta destas vozes da nossa gravação? Se procurássemos entender a voz para além do registo da verbalidade, deixando de estar contida nos prefixos: nem “pré”, nem “para”, nem “pós”? E se, em vez de resto ou falta, a voz for percecionada como excesso, como acontecimento que também se dá nas fendas e fissuras das palavras? Onde nos levaria esta desconsideração da voz de um ponto estritamente funcionalista, sobretudo enquanto promotores de diálogos filosóficos com crianças? O que nos permitiria escutar no excerto que transcrevemos?


Balbuciar nas fissuras das vozes


A escuta das vozes digitalizadas na nossa gravação pede-nos que regressemos vezes sem conta. Play e rewind. Reproduzindo e rebobinando. Em modo mais acelerado. Ou então muuuuiiitttooo maaaiiisss devagaaaaaarrrrr. Damos conta das entoações que transformam uma afirmação numa pergunta, dos sorrisos cúmplices com que algumas frases expressam o contentamento da descoberta, da indignação de uma intervenção impercetível, do arrependimento ao trocar-se o nome de uma menina.

Ouvindo mais uma vez a gravação, damo-nos conta de que não faltam acontecimentos fonéticos. Contudo, lendo a transcrição, surpreendemo-nos com o silenciamento dessa vida fervilhante de vocalizações... entretanto perdidas. E o que escutamos na margem entre as vozes gravadas e as palavras transcritas é o esquecimento da própria infância, entendida como experiência limite das margens entre voz e linguagem (Agamben, 2006; 2008).

Lisa Mazzei tem chamado a atenção para estes silenciamentos através da produção de vozes mansas e amigáveis na investigação qualitativa com crianças:

Afirmo que, no nosso zelo por “captar vozes” e dar sentido, ou fazer sentido facilmente, procuramos frequentemente aquela voz que podemos nomear, categorizar e a que responder com facilidade - aquela que é mansa e amigável. Procuramos a voz familiar que não causa problemas e que é facilmente traduzível. Procuramos uma voz que se enquadre nas nossas formas de conhecer, compreender e interpretar. Uma prática mais produtiva, no entanto, seria procurar a voz que escapa à nossa classificação fácil e que não faz sentido facilmente - a voz na fissura.[5] (Mazzei, 2009, p. 48)

Colocar a escuta também nas fissuras implica alargar o espectro do considerável e darmo-nos conta de que produzimos vozes familiares, convencionalmente moldadas pelas nossas próprias práticas educativas e investigativas: sejam as práticas de emissão vocal quando interagimos com outros, em especial com outros-crianças, sejam as práticas de receção, integração e interpretação dessas mesmas vozes como dados da pesquisa. Quando falamos com alguém, e ainda antes de lhe dirigirmos palavras, já nos fazemos cúmplices de mecanismos de domesticação e disciplina das vozes em presença. Sobretudo quando somos adultos em encontros educativos ou em procedimentos de pesquisa. As vozes das crianças são sempre constrangidas e moldadas pelas sonoridades e pelos silêncios institucionais dos adultos (Spyrou, 2011; 2016). Mesmo daqueles que as querem escutar.

Mas escutar nas fissuras implica também recuarmos até aos entendimentos mais comuns das vozes infantis, fortemente colonizados pelas tendências desenvolvimentistas que já atrás enunciamos. Esta hegemonia inquestionada do desenvolvimento como categoria de leitura das emissões fonéticas das crianças traz um registo individualizante e atomista da voz, em detrimento da consideração de características como a mutualidade, a ambiguidade e a complexidade, que presidem à construção social de qualquer voz humana (Komulainen, 2007). Essa hegemonia funda-se na representação de um aparelho fonador que funciona de acordo com uma ideia de sujeito preexistente à sua própria voz, um sujeito que constitui uma identidade com essa voz, mas quase sempre para lá dos seus registos meramente acústicos. Pensar nesses termos é fazer ainda concessões à ideia moderna e liberal de um sujeito em que a autonomia, a racionalidade e a intencionalidade presidem às enunciações.

Ora, uma vez que a voz não é um fenómeno meramente revelador da autenticidade de um sujeito racional, nem uma função enunciadora de uma realidade discursiva pré-existente, talvez seja importante insistirmos em abandonar o seu registo exclusivamente verbal, textual ou linguístico. O uso de palavras é uma das materialidades da voz, cuja expressão vem imbuída de muitas outras dinâmicas fonéticas. Recusar a ideia de autenticidade como critério da escuta das vozes decorre precisamente da necessidade autocrítica de escutarmos os modos como escutamos[6] (Mazzei, 2009, p. 51).

As vozes são incontíveis, excedem em muito as formas de escuta que lhes possamos devotar, hão de acontecer sempre. Mesmo quando falhamos os seus rastos nas fendas abertas pela acústica dos enunciados ditos. Mesmo quando ninguém as escuta. E, no caso das vozes das crianças, afirmam-se mais fortemente como rastos de bagunça e desarrumação (messiness), de ambiguidade e polivocalidade, compostas por distintas camadas (Spyrou, 2011).

Sendo assim, quando nos focamos apenas nas vozes discerníveis e significadoras, o que fica de fora, que interações são desconsideradas e o que podemos estar a perder com esses silenciamentos? Que enorme vida acústica poderá estar a ficar de fora da comunidade de investigação filosófica?

O convite é para que surpreendamos a voz como movimento que acontece e não como resultado proferido, como descontinuidade de uma profusão fonética e gutural que, mesmo acontecendo nas fissuras, encontra lugares e tempos de materialização. É o espaço para uma política de resistência: nem tudo é da ordem do inteligível, nem tudo é da ordem da eficiência e da operacionalidade, nem tudo é da ordem da linearidade.

 Naquilo que atrás foi designado como comunidade de infância, este entendimento da voz pode tornar-se uma ferramenta poderosa, ainda que difícil.  Não se trata de capturar registos vocais que pertençam e representem um indivíduo, entendido como seu recipiente, mas de habitar, nas diferentes acústicas do pensamento partilhado – acústicas fonéticas e acústicas semânticas – a infância enquanto potencialidade de discurso e de experiência.

Terminemos regressando ao exercício de escuta inoperante do nosso excerto áudio. Não nos interessa tanto aqui o assunto que estava em diálogo nesta atividade, nem eventuais ideias que o grupo tenha construído em conjunto. Isso seria da ordem da investigação e, sem dúvida, terá a sua relevância no complexo e multifacetado trabalho filosófico da comunidade de investigação. Mas importa pensar quando é que esta comunidade de investigação se abriu a uma experiência de comunidade de infância e, para tanto, basta-nos o recorte do diálogo que o excerto nos traz.

Já registamos como é importante retirar do silenciamento das transcrições a ebulição da vida acústica que atravessa as interações. Mas isso não significa trocar um registo pelo outro: não está em causa silenciarem-se agora as palavras e ficarmos apenas com vocalizações a-semânticas. Esse movimento seria ainda um outro tipo de silenciamento, igualmente indesejável, isto é, seria o esquecimento do sentido através do descartar das palavras. O que se pretende é da ordem do acolhimento, da abertura, da polifonia, do registo das diferenças, da escuta das fissuras enquanto fissuras: arejamento, mas também rutura e interrupção.

O que escutamos nas interações do diálogo transcrito que possa ser experiência de comunidade de infância? Escutamos vozes distintas, mas também por vezes a indistinção de quem fala. Escutamos palavras explícitas, mas também outras irrecuperáveis. E escutamos uma adulta que suspende a sua voz de professora e que deixa falar as crianças. A Luísa regista o que as meninas e os meninos vão dizendo, chama-os pelos nomes e deixa-os falar. Depois repete cuidadosamente o que eles disseram, afinando o ritmo do dito pelo ritmo da escrita. Regista as várias ideias na folha grande que está no meio do círculo, para devolver ao grupo o que está a ser pensado e para que todas as pessoas possam ir seguindo o que está a acontecer. Quando escutamos a gravação percebemos que, ao repetir mais lentamente o que foi dito por cada criança, a Luísa saboreia cada contributo e é afetada pelas vozes que falam. Às vezes, escutamos na gravação da sua voz a alegria de uma descoberta partilhada, de uma surpresa inesperada que veio com a frase de um menino. Aconteceu com o que disse o Samir sobre os cabelos esquisitos.

A Luísa preocupa-se mais em chamar cada criança pelo seu nome do que em modelar certos tipos de pensamento ou conduzir o grupo a um discurso predeterminado. As suas emissões vocais não são as da voz da razão ou da razoabilidade. São sonoridades diversas que visam (apenas?) fomentar um pensamento que seja palavra e som, sentido e fonética. Um pensamento que por vezes se constrói como estrutura investigativa verbalmente filosófica – com as suas articulações entre conceitos e perguntas – e que, noutras, convide à experiência das origens do próprio facto de haver pensamento e linguagem. É uma adulta que suspende a autoridade da voz de professora, deixando acontecer as vozes.

Começamos a nossa reflexão registando a estranheza de lermos no livro de Natalia Ginzburg uma narrativa de infância atravessada pelo ressoar de distintas vozes. Mas talvez esta estranheza desapareça se contemplarmos a infância como continuidade e interrupção. Sem querermos descartar a investigação filosófica que se nutre das palavras, reconhecer que a escuta das vozes das crianças (e a escuta das vozes pelas crianças) tem formas de se esconder atrás de cânones familiares é ficarmos atentos para que esta também seja uma rememoração fonética enquanto escuta nas fissuras.


Agradecimentos:

A autora agradece à Escola  António  Santos  Botelho, pertencente à Escola Básica e Secundária Armando Côrtes-Rodrigues, de Vila Franca do Campo, em S. Miguel (Açores –Portugal), instituição parceira do projeto escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política, nomeadamente às crianças e à professora Rosário Toste que tão calorosa e filosoficamente nos têm acolhido na sua sala. A autora agradece também à Professora Paula Vieira, Coordenadora do Projeto filosofâncias na Escola Básica e Secundária Armando Côrtes-Rodrigues, pelo tanto que a sua ação possibilita e nos ensina, assim como pela parceria disponível, alegre e infantil.


Referências


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[1] “The problem with the community of inquiry—as Lipman originally theorised it—is that it parasitically dependsupon infancy while disavowing it, and in this gesture, aligns itself with thetime of ritualised learning. The risk of interruption is exchanged for yetanother progressive instrumentalisation of infancy. What is lost is preciselythe experience of freedom to be otherwise than without any preconceivednotion of what this otherwise might be in advance of the more basic andfundamental experience of its own potentiality. In this sense, to experiencea community of infancy is precisely to rupture the logic of ritual and playthat defines the most extreme polarities of the educational experience today.” (tradução nossa)

[2] “At stake in saving P4C from learning imperatives and measurable outcomes is precisely the preservation of the freedom found in the space and time of studious play that students encounter when they babble.” (itálico e tradução nossos)

[3] O projeto de investigação escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política foi financiado pelo Governo dos Açores (Portugal) e realizado pelo NICA-UAc: Núcleo Interdisciplinar da Criança e do Adolescente, da Universidade dos Açores (M1.1.C/C.S./031/2021/01).

[4] “The fundamental prejudice concerns the tendency to totalize this destination so that, outsider speech, the voice is nothing but an insignificant leftover.” (tradução nossa)

[5] “I assert that in our zeal to ‘capture voices’ and make meaning, or to make easy sense, we often seek that voice which we can easily name, categorize, and respond to – the one that is tame and friendly. We seek the familiar voice that does not cause trouble and that is easily translatable. We seek a voice that maps onto our ways of knowing, understanding, and interpreting. A more productive practice, however, would be to seek the voice that escapes our easy classification and that does not make easy sense – the voice in the crack.” (tradução nossa)

[6] Listening to ourselves listening.