Saberes y prácticas. Revista de Filosofía y Educación / ISSN 2525-2089
Vol. 10 N° 1 (2025) / Sección Doossier / pp. 1-17 / 
Centro de Investigaciones Interdisciplinarias de Filosofía en la Escuela (CIIFE),
Facultad de Filosofía y Letras, Universidad Nacional de Cuyo, Argentina.
revistasaberesypracticas@ffyl.uncu.edu.ar / saberesypracticas.uncu.edu.ar
Recibido: 25/03/2025 Aceptado: 12/05/2025
DOI: https://doi.org/10.48162/rev.36.141
Por uma escuta
inoperante: comunidades
de infância nas fissuras entre vozes e palavras
For An
Inoperative Listening: Communities Of
Infancy in The Cracks Between Voices and Words
Por una escucha inoperante: comunidades infantiles en las fisuras entre voces y palabras
Universidade dos Açores, Portugal
magda.ep.teixeira@uac.pt
Resumo. A palavra ‘infância’ carrega na sua origem
etimológica o afastamento entre as crianças e a voz. No entanto, as vozes das
crianças estão aí: acontecem a todo o momento e chegam a surpreender-nos pela
pertinência social e política das suas intervenções. O presente texto
instala-se nesta perplexidade, procurando recuperar sentidos distintos para a
“voz” (não apenas num significado derivado da palavra, entendida enquanto
‘participação’, mas também no seu sentido literal enquanto conjunto de sons
emitidos pelo aparelho fonador), no contexto da abordagem pedagógica e
filosófica conhecida por ‘comunidade de investigação filosófica’ (community of
philosophical inquiry). Procura-se recuperar alguns lugares que têm sido
atribuídos às vozes das crianças em diferentes interpretações da comunidade de
investigação. Seja enquanto lugar para uma participação democrática de todos os
seus membros, independentemente da idade que tenham, seja enquanto oportunidade
para a expressão livre e criativa das vozes que a compõem, ou ainda como
desafios críticos ao modo como as atuais democracias excluem determinadas
emissões acústicas, nos últimos anos têm surgido propostas que permitem
recuperar a fonética das vozes infantes no âmbito dos diálogos filosóficos com
crianças. Uma dessas propostas consiste numa prática do diálogo filosófico que
recusa critérios operativos de validação ditados por dispositivos pedagógicos
de mensuração e aperfeiçoamento de competências ou habilidades: a “comunidade
de infância” (community of infancy). A nossa proposta não é entender a
comunidade de infância como alternativa exclusiva à comunidade de investigação
filosófica, mas como acontecimento que, podendo emergir por entre as vozes e as
palavras da investigação, permite uma escuta inoperante (inoperative) daquilo
que habita foneticamente as fissuras (cracks) do diálogo partilhado. Esta é a
escuta que acolhe as palavras nas suas diversas materializações fonéticas,
aceitando que o pensamento emerge quando se diz e se articula, mas também
quando se hesita, gagueja ou balbucia.
Palavras-chave. voz; escuta inoperante; comunidade de
investigação filosófica; comunidade de infância; balbuciar
Abstract. The word “infancy” encloses in
its etymological origin the distancing between children and their voices.
However, the voices of children are there: they happen every moment and they
even surprise us with the social and political relevance of their interventions.
This text builds on that perplexity, trying to retrieve distinct meanings for
the “voice” (not only in a meaning derived from the word, understood as
‘participation’, but also in its literal sense as a set of sounds emitted by
the vocal apparatus), in the context of the pedagogical and philosophical
approach known as ‘community of philosophical inquiry’. We try to
recuperate some of the places which have been attributed to children's voices
in different interpretations of the community of inquiry. Be it as a place for
democratic participation of all its members, regardless of their age, or as an
opportunity for the free and creative expression of the voices that are a part
of it, or even as critical challenges to the way in which current democracies exclude
certain acoustic emissions, in recent years proposals have emerged that allow
us to recover the phonetics of infant voices in the context of philosophical
dialogues with children. One of such proposals consists of a practice of
philosophical dialogue which rejects operational validation criteria dictated
by pedagogical devices for measuring and improving skills or abilities: the
“community of infancy”. Our proposal is not to understand the community of
infancy as an exclusive alternative to the community of philosophical inquiry,
but as an event which, insofar as it may emerge among the voices and words of
the investigation, allows for an inoperative listening of that which
phonetically inhabits the cracks of the shared dialogue. This is the listening
that receives the words in their various phonetic materializations, accepting
that thought emerges when one speaks and articulates, but also when one
hesitates, stutters or babbles.
Keywords. voice; inoperative listening;
community of philosophical inquiry; community of infancy; to bable
Resumen. La palabra «infancia» lleva en
su origen etimológico la distancia entre los niños y la voz. Sin embargo, las
voces de los niños están ahí: ocurren todo el tiempo y nos sorprenden por la
relevancia social y política de sus intervenciones. Este texto se sitúa en esta
perplejidad, tratando de recuperar diferentes significados para «voz» (no sólo
en una acepción derivada de la palabra, entendida como “participación”, sino
también en su sentido literal como conjunto de sonidos emitidos por el aparato
fonatorio), en el contexto del enfoque pedagógico y filosófico conocido como
«comunidad de indagación filosófica». El objetivo es recuperar algunos de los
lugares que se han atribuido a la voz de los niños en diferentes
interpretaciones de la comunidad de indagación. Ya sea como lugar para la
participación democrática de todos sus miembros, independientemente de su edad,
o como oportunidad para la expresión libre y creativa de las voces que la
componen, o incluso como desafíos críticos al modo en que las democracias
actuales excluyen determinadas emisiones acústicas, en los últimos años han
surgido propuestas que permiten recuperar la fonética de las voces infantiles
en el contexto de los diálogos filosóficos con los niños. Una de estas
propuestas consiste en una práctica de diálogo filosófico que rechaza los
criterios de validación operativa dictados por los dispositivos pedagógicos de
medición y mejora de competencias o habilidades: la «comunidad de la infancia».
Nuestra propuesta no es entender la comunidad de infancia como una alternativa
exclusiva a la comunidad de investigación filosófica, sino como un
acontecimiento que, pudiendo emerger entre las voces y las palabras de la
investigación, permite una escucha inoperante de lo que habita fonéticamente
las grietas del diálogo compartido. Una escucha que acoge las palabras en sus
diversas materializaciones fonéticas, aceptando que el pensamiento emerge
cuando se dice y se articula, pero también cuando vacila, tartamudea o
balbucea.
Palabras clave. voz; escucha inoperante; comunidad de
indagación filosófica; comunidad de infancia; balbuceo.
’est que nous
sommes, nous existons dans le partage des voix, et que ce partage fait ce que
nous sommes […]
Jean-Luc Nancy,
Le partage des voix, p. 83
O livro mais conhecido da escritora italiana
Natalia Ginzburg intitula-se Lessico famigliare (Léxico Familiar)
e conta, em registo autobiográfico, episódios e ambientes da vida da sua
família durante a primeira metade do século XX. Tendo como pano de fundo uma
Itália que se reconfigurava com a ascensão e vigência do fascismo, vamos
acompanhando nas suas memórias de infância os relatos domésticos de uma
família, imbuídos das grandes mudanças sociais e políticas dos anos da 2.ª
Grande Guerra.
A escrita não parece querer tanto documentar as
mudanças ocorridas no tecido público de uma Europa que sofria grandes impactos
da guerra, mas contar uma micro-história. Ou antes, relata-nos uma série de
microepisódios a partir das memórias de uma então menina, sobre o fundo da
macrohistória europeia da primeira metade do século XX. O que acompanhamos são
memórias de infância. Natália, a escritora e narradora, era uma das crianças
desta família durante o tempo da ação, assumindo-se apenas como testemunha. Não
pretende adotar o ponto de vista privilegiado de um narrador-personagem central
na construção do romance, mas limita-se a contar aquilo que a memória conservou
da sua infância e juventude. Ou seja, sobretudo cenários da vida interior e
familiar dos membros da família Levi.
Confusões e altercações domésticas, encontros de
amigos, namoros gorados e viagens à montanha, novidades da moda europeia que
chegavam a Itália, lições de russo e aulas de piano, móveis e decorações
interiores, conversas sobre livros, jantares, hábitos e deslizes das criadas,
as rotinas das crianças, as preferências da mãe e as obstinações do pai, tudo
através das vozes e palavras escutadas pela criança que Natália foi.
Cada memória relatada por Natalia Ginzburg parece
ter um elemento central: a importância das palavras, ou melhor, de algumas
palavras e frases proferidas por um determinado membro da família em certos
episódios-chave. O léxico. Expressões que, com alguma dramaticidade ou
comicidade, marcaram a vida dos envolvidos num certo momento e que, à força de
serem posterior e continuamente reinvocados e recontados pelos restantes
membros da família, instituíam-se tacitamente como cortes sonoro-lexicais na
vida dos Levi. A história conta como esses episódios vão sendo reinvocados ao
longo do tempo e como, nessa reinvocação a várias vozes, se transformam na
própria matéria narrativa que faz desta família aquilo que ela vai sendo e,
sobretudo, que constrói a infância da menina Natalia.
Contar e
recontar estes episódios ao longo do tempo vai dando lugar apenas ao invocar de
uma frase, de uma expressão simples que se tornava uma espécie de senha para a
cumplicidade da família. Eram essas expressões que, mais do que ilustrarem os
episódios relatados, constituíam a sua própria existência. O léxico tornava-se,
assim, familiar. E a família reencontrava-se nas próprias palavras e vozes.
Mas talvez Natalia Ginzburg vá um pouco mais
longe, chamando a nossa atenção para o modo como estas enunciações lexicais
constituem a própria infância que delas se recorda. As palavras ditas
constituem infâncias enquanto memória. Mesmo que o tempo cronológico passe,
estas enunciações tornam-se senhas de acesso às “relações de outrora” porque a
própria infância está indissoluvelmente ligada a elas (Ginzburg, 2019, p. 26).
São acessos diretos ao que sobrevive à voracidade do tempo cronológico,
ressonâncias longínquas através das quais o presente atualiza o passado.
No caso da família Levi, o que a escrita do
romance parece transparecer é que, para além das palavras em si mesmas, na
construção rememorada daquele léxico familiar, conta igualmente o modo
específico como essas palavras e frases foram enunciadas e, sobretudo, as
características das vozes que as proferiram. A fonética das vozes torna-se
parte imprescindível do exercício de rememoração:
Essas frases são o
fundamento da nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no
mundo, recriando-se e ressuscitando nos pontos mais diversos da terra, quando
um de nós disser: ‘Ilustre signor Lipmann’, e ressoar então nos nossos
ouvidos a voz impaciente do meu pai: - Deixa lá essa história! Quantas vezes
não a ouvi já! (Ginzburg, 2019, p. 26)
As memórias da menina Natália configuram um relato
da infância a partir da sonoridade das vozes circundantes. Nos ouvidos de quem
conta esta história ressoam vozes muito concretas. É surpreendente o modo como
Natalia Ginzburg insiste na dimensão vocalizada desse léxico e como a sua
escrita nos convida a pensar uma infância aberta à materialidade dos
sons das vozes que enchem os espaços acústicos habitados.
Tagarelices, dificuldades de pronúncia, rr
carregados, exclamações, vozes cantantes e moduladas, vozes grossas, gritos
guturais, vozes indecisas, vozes fortes ou profundas são algumas das
características que, no livro, constantemente descrevem as personagens e que a
autora ressalva nas suas memórias de menina. A presença vocal mais forte nessas
ressonâncias é, sem dúvida, a voz forte, trovejante e intransigente do pai de
Natalia. A construção narrativa da personagem paternal faz-se sempre a partir
das vocalizações exageradas e abusivas, tantas vezes intolerantes, de um homem
austero, mas, sobretudo, sonoro. Não é, aliás, à toa que o livro começa e
termina precisamente com descrições enfáticas da voz do pai, como se a autora
nos quisesse dizer que a infância começa e termina em certas vociferações que
ecoam na memória.
Ao lermos estas páginas quase conseguimos escutar
a menina Natalia, como qualquer outra menina ou menino, cuja infância acontecia
na acústica dos corredores, quartos, salas, espaços de infância, pequeno corpo
reverberando memórias sonoras.
Percorremos com Natalia Ginzburg alguns registos
memorísticos de sonoridades e vozes para descobrirmos como a voz pode ser
também um elemento desenhador de infância ou, dito de outra forma, como podemos
encontrar a infância no rememorar das vozes que nos atravessaram e atravessam.
Estamos nos antípodas de uma leitura desvalorizadora da escuta, que a entenda
como presença fugaz cuja ação se resuma ao simples tempo de ativação mecânica
do ouvido (Jonas, 2001, p. 137). Não já uma escuta primeira dos índices, mas o
que Roland Barthes designa como uma “segunda escuta”, a escuta do sentido, do mistério
que convoca uma hermenêutica: “escutar é colocar-se em posição de decodificar o
que é obscuro, confuso ou mudo, para fazer com que venha à consciência o ‘lado
secreto’ do sentido” (p. 220). Neste caso, a escuta de vozes que falam e “[…]
em que o silêncio do ouvinte seria tão ativo quanto a palavra do locutor: a
escuta fala […]” (p. 222).
Esta escuta fala convida-nos a pensar a
infância a partir de emissões vocais cuja ressonância se estende para além da
linearidade de uma cronologia. Não deixa de ser curioso se pensarmos que,
etimologicamente, “infância” significa precisamente uma ausência de fala (do Latim
infantia: in negação; fari falar) e,
sobretudo, como esta
origem do conceito tem marcado séculos de relações
entre as crianças e o
exercício fonético. Relações de
desconsideração das emissões fonéticas
próprias
da infância e da consequente domesticação dos seus
usos da voz, assim como de
desatenção às suas escutas na
constituição de si.
Na linha de perspetivas desenvolvimentistas sobre
a infância, sobretudo de inspiração psicológica, a relação entre as crianças e
a voz – a voz escutada e a voz dita – tem-se perspetivado maioritariamente a
partir da aquisição da competência da fala ou do chamado desenvolvimento
linguístico: a aquisição de competências semânticas e fonológicas. Isto é, como
desejável aprendizagem de normas fonéticas e semânticas para o domínio de um
determinado código linguístico.
Nesse contexto normativo do processo de fonação, a
voz aparece como mediação sonora para a aprendizagem do discurso. Este
entendimento da voz enquanto função linguística reforça politicamente a posição
aristotélica segundo a qual a humanidade se distingue da animalidade
precisamente pela passagem da voz (simples phoné) ao discurso (complexo logos)
(Aristóteles, Política, 1253a10-17). Seguindo Aristóteles, poderíamos
dizer que a voz-apenas-som seria mero índice de prazer ou sofrimento, mas a
voz-feita-discurso captaria a normatividade que permite fundar o justo e o
injusto, o desejável e o indesejável, competência imprescindível para a
produção da polis.
As crianças compõem, aqui, a ponte de ligação
entre o animal e o humano, o momento fulcral de abandono de um exercício da voz
enquanto mero fluxo sonoro de um aparelho fonador (que, afinal, é comum a
muitas outras espécies), um elemento a docilizar e a superar para a
constituição plena do (único) animal político.
Embora reconhecendo a importância desta linha de
trabalho na constituição de comunidades falantes, que tanto esta
desconsideração dos usos da fala característicos das crianças pode ter
influenciado o modo como pensamos as relações entre voz e infância? E que tanto
pode estar a ficar perdido nos interstícios e fissuras de uma leitura das vozes
das crianças como lacunar e imperfeita? Que outros caminhos se podem fazer
anunciar na infância narrada por Natalia Ginzburg, nas sugestões bartheanas de
uma escuta fala, nos encontros filosóficos que temos com crianças e com as suas
vozes?
Colocamos estes questionamentos especificamente no
âmbito do trabalho filosófico com crianças, na linha da abordagem conhecida
como “comunidade de investigação filosófica” (Striano, 2011; Echeverria &
Hannam, 2017). Surgida no âmbito do Programa Curricular designado como
Filosofia para Crianças (Sharp, 1987; Lipman, 2003; De Marzio, 2017), proposto
pelo IAPC: Institute for the Advancement of Philosophy for Children, a
comunidade de investigação filosófica constituiu-se como uma abordagem
epistemológica, ética e política ao diálogo filosófico com crianças. Ao longo
das últimas décadas, a comunidade de investigação filosófica tem-se
autonomizado desse contexto pedagógico e filosófico inicial, assumindo
diferentes contornos e reconfigurações (Kennedy & Kennedy, 2012; Vieira,
2019).
Algumas considerações da comunidade de
investigação orientam-se pelos objetivos de um domínio crescente de habilidades
discursivas e da consequente aquisição de competências argumentativas
complexas, fundamentais a uma conceção de filosofia enquanto discurso racional
lógico e abstrato (Splitter, 2022; Bouchard & Daniel, 2018). São abordagens
focadas essencialmente nas dinâmicas cognitiva e metacognitiva da construção de
posições partilhadas sobre os assuntos em diálogo. Se nos restringirmos a estas
leituras, seremos recordados dos ditames aristotélicos que guardam para a voz
um enquadramento meramente funcional. A voz será aqui um mero veículo
comunicante, elemento fonético importante por aquilo que traz de
não-apenas-fonético: a sua emissão dirige-se a um exercício disciplinador
conducente a um registo sonoro propício à expressão clara e articulada de
palavras e ideias. A escuta que esta representação da voz convoca foca-se,
então, naquilo que, nela, está para além dela.
Contudo, esta configuração essencialmente
cognitivista da comunidade de investigação tem recebido distintas leituras
críticas (Kohan, 2006; Murris, 2015; Chetty, 2018; Elicor, 2020) e aberto ao
longo das últimas décadas para variadas propostas renovadoras (Haynes &
Murris, 201; Jasinski & Lewis, 2016; Johansson, 2018). Nestas
reconfigurações, a fala e a própria voz das crianças têm emergido como aspetos
a tomar em consideração nas concretizações do trabalho filosófico com crianças,
num entendimento que parece extrapolar uma simples dimensão funcional cognitiva
e apontar para registos sociais e políticos de maior complexidade. Aliás, os
recentes movimentos de renovação da comunidade de investigação apontam para
exercícios críticos que nos convidam a regressar aos começos da nossa relação
com a infância, num sentido propriamente filosófico de autoquestionamento não
só desta abordagem filosófica e pedagógica, mas do próprio modo como habitamos
politicamente o mundo (Rollo, 2021).
Inserimos a nossa proposta nesta linha,
considerando que as vozes das crianças pertencem aos espaços partilhados em que
elas habitam. Uma simples escuta dos seus discursos será suficiente para
percebermos que têm muito para dizer e que, se não as escutarmos, estamos a
perder inúmeras possibilidades de recriarmos o mundo (Reynolds, 2024). A
comunidade de investigação filosófica tem sido entendida como o espaço
apropriado para esse exercício de participação cívica das crianças, exigindo
por parte de quem escuta o respeito e a responsividade que as encorajem a
continuar (Mohr Lone, 2020). Pensar filosoficamente em comunidade, procurando
identificar perguntas e polir conceitos, numa dinâmica questionadora de
exploração conjunta que permita explorar os sentidos das experiências próprias
e alheias, é possível através de um contínuo balanceamento entre escutar e
falar e, até, de exploração de novas formas de dizer (Weber, 2020, p. 40).
Os praticantes e estudiosos da comunidade de
investigação filosófica têm mostrado inúmeras as possibilidades de explorar
práticas discursivas em que vozes sem filtros e vozes marginais
se comprometem na criação de sentidos comuns de mundo, de formas experimentais,
transformadoras e, sobretudo, politizadoras (Fletcher, 2016). A comunidade de
investigação filosófica releva-se, assim, como uma oportunidade criativa e
multifacetada para as crianças se expressarem livremente e fazerem ouvir as
suas vozes. Esta possibilidade tem sido reclamada sobretudo grupos excluídos,
como sejam crianças que pertencem a contextos sociais e políticos deteriorados
(Kizel, 2016). Mas também têm sido feitos alguns avisos: as potencialidades da
comunidade de investigação como abordagem pedagógica só se concretizam se os
adultos responsáveis pelas atividades evitarem atitudes de poder e controlo
(Anderson, 2020, p. 18). E aqui encontramo-nos perante nós mesmos.
Parece-nos importante seguir filosoficamente por
este trilho crítico dos lugares da voz, não só questionando os pressupostos
originais da comunidade de investigação, mas também explorando formas
diversificadas de a operacionalizar. E, acima de tudo, desconfiando dos papéis
que, nela, nos reservamos. Recuperamos mais alguns passos, entretanto já dados:
as vozes das crianças podem colocar-nos a nós, adultos promotores de encontros
filosóficos, em questão (Frias, Diniz, Carvalho, 2023), atrasando os ritmos frenéticos
nos quais embalamos, mesmo que involuntariamente, a nossa ação educativa.
Escutar essas vozes pode por em causa a organização institucional educativa,
mas pode ser uma experiência que ecoe retumbantemente até aos espaços públicos
mais amplos. Considerar as vozes das crianças pode abrir “movimentos
polifónicos” e ousar a construção de novas organizações políticas, “novas
formas de polis: poli(s)fonias” (Matos & Vieira, 2023). As
possibilidades que se abrem são imensas.
Todavia, a acústica das vozes infantis em
comunidade de investigação também pode perturbar a própria imagem do pensamento
em que operamos. A homogeneidade metafísica que privilegia o registo
estritamente mental – e, logo, silencioso – do pensamento, presa a um
universalismo filosófico que desconsidera a singularidade de cada voz, é o
registo que herdamos da tradição filosófica ocidental (Cavarero, 2005).
Atender, no exercício filosófico do pensamento em comunidade, ao acontecimento
das vozes é abrir espaço para que os exercícios de emissão e de receção do dito
sejam infetados pelas modulações e variações fonéticas. A ousadia de escutar as
características acústicas das vozes pronunciadas, entendendo o conceito de voz
para além do sentido social de mera participação, arrasta-nos para um exercício
do pensamento que descobre a relevância filosófica da materialidade de um
aparelho fonador (Costa Carvalho, 2022). O evento material da escuta e da
afetação abre, assim, a possibilidade de pensarmos o efeito que a materialidade
acústica do dito pode ter no pensamento desencadeado numa comunidade de
investigação que se assume como comunidade filosófica de vozes (Costa
Carvalho, Almeida & Taramona, 2023).
Colocamo-nos, assim, na rota de uma das mais
interessantes e ousadas reconfigurações da comunidade de investigação
filosófica: a comunidade de infância, proposta por Igor Jasinski e Tyson
Lewis (2016; Jasinski, 2018). Resistindo à cooptação da comunidade de
investigação por mecanismos quantitativos de aprendizagem progressiva, focados
no melhoramento de competências argumentativas dos estudantes, estes autores
propõem uma leitura do diálogo filosófico com crianças a partir de um fundo
agambeniano, ressalvando as noções de infância e de discurso do filósofo
italiano. Jasinski e Lewis são perentórios na sua proposta:
O problema da
comunidade de investigação - tal como Lipman a teorizou originalmente - é que
depende parasitariamente da infância, ao mesmo tempo que a renega e, neste
gesto, alinha-se com o tempo da aprendizagem ritualizada. O risco de
interrupção é trocado por mais uma instrumentalização progressiva da infância.
O que se perde é precisamente a experiência da liberdade de ser de outro modo,
sem qualquer noção preconcebida do que esse outro modo possa ser, antes da
experiência mais básica e fundamental da sua própria potencialidade. Neste
sentido, viver uma comunidade de infância é precisamente romper com a lógica do
ritual e do jogo que define as polaridades mais extremas da experiência
educativa atual. (Jasinski & Lewis, 2016, p. 9).[1]
A comunidade inoperante ou ociosa a que se referem
situa-se num meio termo entre salas de aula ritualizadas em torno de uma
produtividade que se mede e padroniza e salas de aula desestruturadas por uma
ludicidade totalmente descomprometida. E os autores acrescentam: “O que está em
jogo para salvar a FpC [Filosofia para Crianças] dos imperativos de
aprendizagem e dos resultados mensuráveis é precisamente a preservação da
liberdade que se encontra no espaço e no tempo do jogo estudioso que os
alunos encontram quando balbuciam.” (Jasinski & Lewis, 2016, p. 7).[2]
A comunidade de investigação concebida de modo
tradicional (que, acima, designamos como cognitivista) centra-se numa
comunicação de ideias e na construção partilhada, intencional e articulada, de
procedimentos argumentativos. A voz afirma aí uma dimensão funcional porque,
como vimos, é entendida exclusivamente enquanto instrumento fonético para
expressar o que é da ordem semântica do discurso organizado. Por isso, tudo o
que não seja do domínio da articulação verbal normalizada tem de ser
tendencialmente corrigido pelo adulto responsável, já que o seu papel é
promover um exercício eficiente da racionalidade argumentativa. Já a comunidade
de infância resiste à instrumentalização da infância e de todos os seus
registos, incluindo o vocal, desativando a procura de um formato razoável do
discurso em prol de uma experiência das fissuras fonéticas e semânticas que se
descobrem nesse mesmo exercício. Trata-se de promover um encontro com o próprio
mistério do discurso e da voz, de que fala Agamben em diferentes momentos da
sua obra (2006; 2008). Este exercício filosófico, sem recusar a importância das
palavras e da articulação discursiva, aceita o risco da interrupção infantil de
um modo fechado e já cristalizado de pensar o mundo.
Jasinski e Lewis falam-nos com palavras fortes:
seguir a opção cognitivista da comunidade de investigação é mais do que
instrumentalizar a infância porque implica renegá-la e, pior, parasitá-la. Por
isso, propõem recuperar nos ambientes acústicos e semânticos da comunidade de
investigação o que se encontra nas margens e nas fissuras da linguagem, aquilo
mesmo que a torna possível. Registos como o balbucio, o gaguejo ou a hesitação
são acolhidos na comunidade de infância enquanto formas de expressividade não
necessariamente comunicante, que recuam até antes das normas de razão e de
verdade orientadoras das intervenções da voz do professor.
Quando o
professor suspende a soberania da sua voz estará, então, a permitir uma
experiência partilhada do discurso fora de um registo racional pré-determinado
e, necessariamente, excludente de certos registos fonéticos. Garante, assim,
que os participantes desta comunidade – crianças e adultos – recuem até uma
experiência disruptiva do próprio facto de que falam e de que têm voz, antes de
qualquer pré-determinação linguística racionalizante. Tratando-se de uma
comunidade inoperante, o diálogo filosófico não se torna refém da produção de
novos sentidos, mas tempo e espaço para o encontro com a própria potencialidade
de existirem novos sentidos e significados.
Seguindo os rastos destes autores, ousamos dizer
que podemos desconsiderar a infância quando escutamos, nas vozes das crianças,
apenas o seu uso discursivo-semântico. Atender a esse discurso enquanto simples
resultado ou produto é entender as palavras ditas por diferentes vozes como se
não fossem materializações diferenciadas acusticamente. É agirmos como se a
emergência das enunciações não decorresse de um processo expressivo muitas
vezes vacilante e indeciso. É coartar a liberdade original presente na própria
infância do discurso.
O nosso questionamento mantém-se à procura daquilo
que podemos estar a perder nesse processo. E regressamos aos encontros com as
crianças através da escuta dos primeiros minutos de uma gravação áudio de uma
atividade filosófica decorrida no âmbito do projeto escuto.te: vozes das
infâncias entre a filosofia e a política[3].
Procuramos seguir os ecos das leituras que temos estado a seguir até aqui e
retornamos a este áudio de forma inoperante. Não viemos à procura de nada, não
nos colocamos na posição da investigadora que segue os rastos de uma
descoberta. Escutamos apenas e rememoramos, na acústica das vozes pronunciadas,
a experiência de pensarmos em conjunto.
Leiamos agora a transcrição possível do excerto
dessa gravação áudio das vozes das crianças e dos adultos que fizeram parte da
comunidade naquele dia, trazendo-as para este texto na forma de registos
escritos:
[…] Rafael: A gente come as
palavras.
Paula: A gente come as
palavras, não era?
Rui: E a gente só pode dizer
uma vez...
Paula: Diz, Rui?...
Rui: Hum... a gente pode dizer
uma vez ou a gente fica com
aquelas e a gente...?
Paula: Isso é uma pergunta,
não é?
Rui: Dá uma!
Paula: Portanto, queres fazer a
tua pergunta, Rui, diz lá... essa
era a tua pergunta que
também já...
Rui: eh... Quando a gente diz e
fala, a gente faz a palavra ou a
gente continua com ela?
Paula: Pois é...
Rita: Quando a gente diz essa
palavra a gente fica mais
tempo.
Paula: [sorri]... sim... E tu és a
Marta?
Rita: Rita.
Paula: Sim, Rita, peço
desculpa, sim...
Rita: A gente fala palavras e
escreve.
Paula: Hum... escrever as
palavras, sim... Samir, diz lá!
Samir: A gente passa e no
passado a gente via aqueles
cabelos estranhos.
Paula: Aqueles quê..?
Samir: Cabelos estranhos.
Rita: Ah, sim!!!
Paula: Ah, sim! No livro! Ok,
sim... E tu, queres dizer
alguma coisa, Luana?
Luana: Estou pensando
ainda...
Paula: Vamos continuar a ler a
história?
Magda: Vamos! Já nem me
lembro onde é que ficou...
Menina: hum...
Paula: Onde é que nós
ficamos?
Lourenço: hum... a gente ia...
[Todas as crianças imitam o
Lourenço e fazem o mesmo
som: hum... hum...]
Paula: Hum! Cá está! “Hum...”
Há perguntas que têm este
som: “hum...”
[As crianças prolongam o som:
hum... hum...]
Paula: Há perguntas que têm
som...
Magda: Há perguntas que têm
este som, que é o som das
coisas doces...
Todas as crianças: Hum...
Magda: Pode ser que haja
outras perguntas que têm
outros sons... vamos ficaratentos!
[…]
Este diálogo aconteceu como
tantos outros, um corte no meio de uma longa conversa entre professoras responsáveis
pelas atividades de filosofia na Escola António
Santos Botelho, em Vila Franca do Campo, S. Miguel, Açores, e um grupo de crianças do
2.º ano, com 7 e 8 anos. O grupo conversava na sequência de uma atividade
decorrida na semana anterior, acompanhando a leitura conjunta do livro A
Grande Fábrica das Palavras, de Agnès de Lestrade e Valeria Docampo (2012).
O livro conta a história de três crianças que vivem num país onde as pessoas
quase não falam por que é preciso pagar para dizer cada palavra. As palavras
têm um custo associado, mas nem todas valem a mesma quantia: palavras mais
complexas exigem maiores recursos (como “Amo-te do fundo do meu coração.”) e
palavras menos consideradas socialmente chegam a ser encontradas no lixo (como
“excrementos de cabra” e “rabos de coelho”). As crianças logo se entusiasmaram
com a história, com o humor da escrita, mas sobretudo com as relações amorosas entre
as três personagens: Sara, a menina, Filipe, o vizinho pobre que guarda
palavras só para ela, e Óscar, o admirador abastado que pode esbanjar palavras.
Regressamos a estes registos num
balanceamento entre o que nós – investigadora – podemos escutar no dispositivo
gravador móvel que registou o diálogo e o que vós – leitores – podem adivinhar
nas fissuras e espaços que as reticências e as interjeições transcritas
procuram arejar.
Será, por isso, importante começar
por sublinhar a perda epistémica ocorrida no exercício da transcrição porque
aos leitores não estão acessíveis os registos sonoros do que aconteceu, isto é,
as inscrições acústicas que marcaram a materialidade das trocas entre o Rui, a
Rita, o Samir, o Lourenço, a Paula, a Magda e todas as outras pessoas presentes
na atividade de cujas vozes gravadas não nos chegaram registos suficientes para
que, alguns meses ocorridos, as pudéssemos agora nomear. Nos filtros da escrita
fica invariavelmente excluída a maior parte dos contributos que se configuram
como hesitações pré e para-verbais, gaguejos, sorrisos e outras diferentes marcas
da oralidade dos falantes.
Aliás, acrescentamos, as práticas
mais comuns de transcrição e análise discursiva em investigação visam ultrapassar
precisamente tudo o que fica para lá da semântica do dito, entendido como
ruído, o que demonstra mais uma vez a desconsideração a que a fonética das
vozes é votada. Por vezes, é até permitido aos investigadores retocarem as
palavras ditas – sobretudo quando se trata de diálogos com crianças – para não
colocarem em causa a inteligibilidade dos conteúdos e manterem a relevância do
trabalho realizado. É também comum o uso de [parêntesis retos] para indicar os
cortes ou acrescentos introduzidos pelo próprio investigador, em nome da
clarificação da semântica do dito.
Há um claro cunho político nas
práticas de escuta, uma vez que instauram dinâmicas de inclusão e de exclusão
(Bickford, 1996), aspeto que fica bastante parente no contexto de práticas de
investigação. A tendência para ignorar a materialidade do que se escuta, em
nome da clareza e da transparência do sentido, configura-se como processo que
negligencia as intensidades e as singularidades das vozes corpóreas. Mas como
podem estas corporeidades deixar de fazer parte das pesquisas? Que efeitos têm
essas exclusões? Textualizar narrativas orais carrega a violência dos
dispositivos de transcrição que deixam de fora hesitações, repetições, pausas,
reviravoltas, silêncios, vibrações (Tamboukou, 2020).
O nosso excerto hesita e gagueja inoperativamente
e os intervenientes parecem a tatear à procura de formas de dizer. Se
percorrermos a gravação à procura de uma construção de sentidos que revele
descobertas partilhadas ou conhecimento formulado, teremos de saltar por cima
do realmente dito e procurar adivinhar aprendizagens que registem as
interpretações operativas que as crianças fizeram a partir do que leram. Duas
adultas interagem com um grupo de crianças e caminham no sentido de as ajudar a
articular ideias que elas apenas ensaiam verbalmente. Se seguíssemos este
procedimento interpretativo, encontraríamos dois momentos com algum interesse
operativo: quando a Paula utiliza vocabulário comum na investigação filosófica
com crianças, que permite nomear o ato de pensamento que o Rui exemplificava
(“Portanto, queres fazer a tua pergunta, Rui, diz lá...”) e quando a Magda orienta
os próximos exercícios de escuta (“Pode ser que haja outras perguntas que têm
outros sons... vamos ficar atentos.”). Ambas intervêm cuidando da qualidade da
própria investigação, investindo na semântica do discurso proferido e lançando
bases para as futuras trocas entre os participantes.
O resultado destas práticas, do
ponto de vista da presença da voz na construção do pensamento, é a sua total
exclusão dos elementos a considerar, sobretudo quando já estamos no momento de
transcrição e análise do que foi proferido. Pouco importam os modos como o Rui,
a Rita, o Samir, o Lourenço, a Paula e a Magda vocalizaram o que disseram, os
sons emitidos que foram selecionados para a transcrição são apenas os que
configuram as palavras ditas. A voz reafirma-se como sobra ou resto: mera
função do sistema linguístico cujo destino é o discurso. Como afirma Adriana Cavarero:
“O preconceito fundamental diz respeito à tendência para totalizar este
destino, de modo que, fora do discurso, a voz não passe de um resto
insignificante.”[4] (2005, p.
12).
No fundo, o exercício de
transcrição que adotamos neste texto mais não faz do que reproduzir o quadro
referencial presente na maior parte das interações orais com crianças em
contextos educativos, seguindo o modelo discursivo da racionalidade e da
razoabilidade. Transcrever é tornar as vocalizações silenciosas e o que se
perde nesse exercício é em tudo idêntico àquilo a que desatendemos quando
interagimos com as crianças. Mesmo em comunidades de investigação filosófica.
Mas a verdade é que a esfera da
voz é constitutivamente mais ampla do que a esfera do discurso, excedendo-o.
Estava antes dele, está para além dele e estará depois dele: na pré-verbalidade,
na para-verbalidade e na pós-verbalidade.
É certo que a própria invocação
destas três categorias revela a força com que o discurso,
instaurando-se como
destino final da voz, é também validado como
critério de considerabilidade da
própria voz. Mas e se persistíssemos numa outra escuta
destas vozes da nossa
gravação? Se procurássemos entender a voz para
além do registo da verbalidade,
deixando de estar contida nos prefixos: nem “pré”,
nem “para”, nem “pós”? E se,
em vez de resto ou falta, a voz for percecionada como excesso, como
acontecimento que também se dá nas fendas e fissuras das
palavras? Onde nos
levaria esta desconsideração da voz de um ponto
estritamente funcionalista,
sobretudo enquanto promotores de diálogos filosóficos com
crianças? O que nos
permitiria escutar no excerto que transcrevemos?
A escuta das vozes digitalizadas na nossa gravação
pede-nos que regressemos vezes sem conta. Play e rewind.
Reproduzindo e rebobinando. Em modo mais acelerado. Ou então muuuuiiitttooo
maaaiiisss devagaaaaaarrrrr. Damos conta das entoações que transformam uma
afirmação numa pergunta, dos sorrisos cúmplices com que algumas frases
expressam o contentamento da descoberta, da indignação de uma intervenção
impercetível, do arrependimento ao trocar-se o nome de uma menina.
Ouvindo mais uma vez a gravação, damo-nos conta de
que não faltam acontecimentos fonéticos. Contudo, lendo a transcrição,
surpreendemo-nos com o silenciamento dessa vida fervilhante de vocalizações...
entretanto perdidas. E o que escutamos na margem entre as vozes gravadas e as
palavras transcritas é o esquecimento da própria infância, entendida como
experiência limite das margens entre voz e linguagem (Agamben, 2006; 2008).
Lisa Mazzei tem chamado a atenção para estes
silenciamentos através da produção de vozes mansas e amigáveis na
investigação qualitativa com crianças:
Afirmo que, no
nosso zelo por “captar vozes” e dar sentido, ou fazer sentido facilmente,
procuramos frequentemente aquela voz que podemos nomear, categorizar e a que
responder com facilidade - aquela que é mansa e amigável. Procuramos a voz
familiar que não causa problemas e que é facilmente traduzível. Procuramos uma
voz que se enquadre nas nossas formas de conhecer, compreender e interpretar.
Uma prática mais produtiva, no entanto, seria procurar a voz que escapa à nossa
classificação fácil e que não faz sentido facilmente - a voz na fissura.[5] (Mazzei,
2009, p. 48)
Colocar a escuta também nas fissuras implica
alargar o espectro do considerável e darmo-nos conta de que produzimos vozes
familiares, convencionalmente moldadas pelas nossas próprias práticas
educativas e investigativas: sejam as práticas de emissão vocal quando
interagimos com outros, em especial com outros-crianças, sejam as práticas de
receção, integração e interpretação dessas mesmas vozes como dados da pesquisa.
Quando falamos com alguém, e ainda antes de lhe dirigirmos palavras, já nos
fazemos cúmplices de mecanismos de domesticação e disciplina das vozes em
presença. Sobretudo quando somos adultos em encontros educativos ou em
procedimentos de pesquisa. As vozes das crianças são sempre constrangidas e
moldadas pelas sonoridades e pelos silêncios institucionais dos adultos
(Spyrou, 2011; 2016). Mesmo daqueles que as querem escutar.
Mas escutar nas fissuras implica também recuarmos
até aos entendimentos mais comuns das vozes infantis, fortemente colonizados
pelas tendências desenvolvimentistas que já atrás enunciamos. Esta hegemonia
inquestionada do desenvolvimento como categoria de leitura das emissões
fonéticas das crianças traz um registo individualizante e atomista da voz, em
detrimento da consideração de características como a mutualidade, a ambiguidade
e a complexidade, que presidem à construção social de qualquer voz humana (Komulainen,
2007). Essa hegemonia funda-se na representação de um aparelho fonador que
funciona de acordo com uma ideia de sujeito preexistente à sua própria voz, um
sujeito que constitui uma identidade com essa voz, mas quase sempre para lá dos
seus registos meramente acústicos. Pensar nesses termos é fazer ainda
concessões à ideia moderna e liberal de um sujeito em que a autonomia, a
racionalidade e a intencionalidade presidem às enunciações.
Ora, uma vez que a voz não é um fenómeno meramente
revelador da autenticidade de um sujeito racional, nem uma função enunciadora
de uma realidade discursiva pré-existente, talvez seja importante insistirmos
em abandonar o seu registo exclusivamente verbal, textual ou linguístico. O uso
de palavras é uma das materialidades da voz, cuja expressão vem imbuída de
muitas outras dinâmicas fonéticas. Recusar a ideia de autenticidade como
critério da escuta das vozes decorre precisamente da necessidade autocrítica de
escutarmos os modos como escutamos[6] (Mazzei,
2009, p. 51).
As vozes são incontíveis, excedem em muito as
formas de escuta que lhes possamos devotar, hão de acontecer sempre. Mesmo
quando falhamos os seus rastos nas fendas abertas pela acústica dos enunciados
ditos. Mesmo quando ninguém as escuta. E, no caso das vozes das crianças,
afirmam-se mais fortemente como rastos de bagunça e desarrumação (messiness),
de ambiguidade e polivocalidade, compostas por distintas camadas (Spyrou,
2011).
Sendo assim, quando nos focamos apenas nas vozes
discerníveis e significadoras, o que fica de fora, que interações são
desconsideradas e o que podemos estar a perder com esses silenciamentos? Que
enorme vida acústica poderá estar a ficar de fora da comunidade de investigação
filosófica?
O convite é para que surpreendamos a voz como
movimento que acontece e não como resultado proferido, como descontinuidade de
uma profusão fonética e gutural que, mesmo acontecendo nas fissuras, encontra
lugares e tempos de materialização. É o espaço para uma política de
resistência: nem tudo é da ordem do inteligível, nem tudo é da ordem da
eficiência e da operacionalidade, nem tudo é da ordem da linearidade.
Naquilo que
atrás foi designado como comunidade de infância, este entendimento da voz pode
tornar-se uma ferramenta poderosa, ainda que difícil. Não se trata de capturar registos vocais que
pertençam e representem um indivíduo, entendido como seu recipiente, mas de
habitar, nas diferentes acústicas do pensamento partilhado – acústicas
fonéticas e acústicas semânticas – a infância enquanto potencialidade de
discurso e de experiência.
Terminemos regressando ao exercício de escuta
inoperante do nosso excerto áudio. Não nos interessa tanto aqui o assunto que
estava em diálogo nesta atividade, nem eventuais ideias que o grupo tenha
construído em conjunto. Isso seria da ordem da investigação e, sem dúvida, terá
a sua relevância no complexo e multifacetado trabalho filosófico da comunidade
de investigação. Mas importa pensar quando é que esta comunidade de
investigação se abriu a uma experiência de comunidade de infância e, para
tanto, basta-nos o recorte do diálogo que o excerto nos traz.
Já registamos como é importante retirar do
silenciamento das transcrições a ebulição da vida acústica que atravessa as
interações. Mas isso não significa trocar um registo pelo outro: não está em
causa silenciarem-se agora as palavras e ficarmos apenas com vocalizações
a-semânticas. Esse movimento seria ainda um outro tipo de silenciamento,
igualmente indesejável, isto é, seria o esquecimento do sentido através do
descartar das palavras. O que se pretende é da ordem do acolhimento, da
abertura, da polifonia, do registo das diferenças, da escuta das fissuras
enquanto fissuras: arejamento, mas também rutura e interrupção.
O que escutamos nas interações do diálogo
transcrito que possa ser experiência de comunidade de infância? Escutamos vozes
distintas, mas também por vezes a indistinção de quem fala. Escutamos palavras
explícitas, mas também outras irrecuperáveis. E escutamos uma adulta que
suspende a sua voz de professora e que deixa falar as crianças. A Luísa regista
o que as meninas e os meninos vão dizendo, chama-os pelos nomes e deixa-os
falar. Depois repete cuidadosamente o que eles disseram, afinando o ritmo do dito
pelo ritmo da escrita. Regista as várias ideias na folha grande que está no
meio do círculo, para devolver ao grupo o que está a ser pensado e para que
todas as pessoas possam ir seguindo o que está a acontecer. Quando escutamos a
gravação percebemos que, ao repetir mais lentamente o que foi dito por cada
criança, a Luísa saboreia cada contributo e é afetada pelas vozes que falam. Às
vezes, escutamos na gravação da sua voz a alegria de uma descoberta partilhada,
de uma surpresa inesperada que veio com a frase de um menino. Aconteceu com o
que disse o Samir sobre os cabelos esquisitos.
A Luísa preocupa-se mais em chamar cada criança
pelo seu nome do que em modelar certos tipos de pensamento ou conduzir o grupo
a um discurso predeterminado. As suas emissões vocais não são as da voz da
razão ou da razoabilidade. São sonoridades diversas que visam (apenas?)
fomentar um pensamento que seja palavra e som, sentido e fonética. Um
pensamento que por vezes se constrói como estrutura investigativa verbalmente
filosófica – com as suas articulações entre conceitos e perguntas – e que,
noutras, convide à experiência das origens do próprio facto de haver pensamento
e linguagem. É uma adulta que suspende a autoridade da voz de professora,
deixando acontecer as vozes.
Começamos a nossa reflexão registando a estranheza
de lermos no livro de Natalia Ginzburg uma narrativa de infância atravessada
pelo ressoar de distintas vozes. Mas talvez esta estranheza desapareça se
contemplarmos a infância como continuidade e interrupção. Sem querermos
descartar a investigação filosófica que se nutre das palavras, reconhecer que a
escuta das vozes das crianças (e a escuta das vozes pelas crianças) tem formas
de se esconder atrás de cânones familiares é ficarmos atentos para que esta também
seja uma rememoração fonética enquanto escuta nas fissuras.
Agradecimentos:
A autora agradece
à Escola António Santos
Botelho, pertencente à Escola Básica e Secundária Armando
Côrtes-Rodrigues, de Vila Franca do Campo, em S. Miguel (Açores –Portugal), instituição
parceira do projeto escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a
política, nomeadamente às crianças e à professora Rosário Toste que tão
calorosa e filosoficamente nos têm acolhido na sua sala. A autora agradece
também à Professora Paula Vieira, Coordenadora do Projeto filosofâncias na Escola
Básica e Secundária Armando Côrtes-Rodrigues, pelo tanto que a sua ação
possibilita e nos ensina, assim como pela parceria disponível, alegre e
infantil.
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[1] “The problem with the community of
inquiry—as Lipman originally theorised it—is that it parasitically dependsupon
infancy while disavowing it, and in this gesture, aligns itself with thetime of
ritualised learning. The risk of interruption is exchanged for yetanother
progressive instrumentalisation of infancy. What is lost is preciselythe
experience of freedom to be otherwise than without any preconceivednotion of
what this otherwise might be in advance of the more basic andfundamental
experience of its own potentiality. In this sense, to experiencea community of
infancy is precisely to rupture the logic of ritual and playthat defines the
most extreme polarities of the educational experience today.” (tradução nossa)
[2] “At stake in saving P4C from
learning imperatives and measurable outcomes is precisely the preservation of
the freedom found in the space and time of studious play that students
encounter when they babble.” (itálico e tradução
nossos)
[3] O projeto de
investigação escuto.te: vozes das infâncias entre a filosofia e a política foi financiado
pelo Governo dos Açores (Portugal) e realizado pelo NICA-UAc: Núcleo Interdisciplinar
da Criança e do Adolescente, da Universidade dos Açores (M1.1.C/C.S./031/2021/01).
[4] “The fundamental prejudice concerns
the tendency to totalize this destination so that, outsider speech, the voice
is nothing but an insignificant leftover.” (tradução nossa)
[5] “I assert that in our zeal to
‘capture voices’ and make meaning, or to make easy sense, we often seek that
voice which we can easily name, categorize, and respond to – the one that is
tame and friendly. We seek the familiar voice that does not cause trouble and
that is easily translatable. We seek a voice that maps onto our ways of
knowing, understanding, and interpreting. A more productive practice, however,
would be to seek the voice that escapes our easy classification and that does
not make easy sense – the voice in the crack.” (tradução
nossa)
[6] Listening to ourselves listening.